– Os anjos são amor em movimento. Que não pára nunca, que luta para crescer, que está
além do bem e do mal. O amor que tudo devora, que tudo destrói, que tudo perdoa. Os anjos são feitos desse amor, e, ao mesmo tempo, são seus mensageiros.
“O amor do anjo exterminador, que carrega um dia nossa alma, e do anjo da guarda, que a traz de volta. O amor em movimento.”
– O amor em guerra – disse ela.
– Não existe amor em paz. Quem for por aí, está perdido.
“O que um garoto desses entende de amor? Vive só, no deserto, e jamais se apaixonou”, pensou Chris. E, no entanto, por mais que se esforçasse, não conseguia lembrar de um só momento em que o amor lhe trouxera paz. Sempre viera acompanhado de agonias, êxtases, alegrias intensas e tristezas profundas. Took virou-se para eles:
– Vamos ficar quietos um pouco, para que nossos anjos escutem o barulho que existe atrás de nosso silêncio.
Chris ainda pensava no amor. Sim, o rapaz parecia ter razão, embora ela pudesse jurar que ele conhecia tudo aquilo apenas em teoria.
“O amor só descansa quando está perto de morrer, que estranho.” Como era estranho tudo o que estava experimentando, principalmente a sensação de “alma crescida”. Nunca havia pedido a Paulo para ensinar-lhe nada – ela acreditava em Deus, e isto era suficiente. Respeitava a busca do marido, mas – talvez porque fosse tão próximo, ou porque soubesse que ele tinha defeitos como todos os outros homens – jamais havia se interessado. Mas não conhecia Took. Ele dissera: “Procure olhar o horizonte. Preste atenção à sua segunda mente.” E ela obedeceu. Agora, com a alma crescida, estava descobrindo como era bom e quanto tempo havia perdido.
– Por que precisamos conversar com o anjo? – disse Chris, interrompendo o silêncio.
– Descubra com ele.
Took não se irritou com seu comentário. Se ela tivesse perguntado a Paulo, teria levado uma bronca.
Rezaram um Pai-Nosso e uma Ave-Maria. Então o americano disse que podiam descer.
– Só isso? – Paulo estava desapontado.
– Quis trazê-los aqui para que meu anjo visse que fiz o que ele mandou – respondeu Took. –
Não tenho nada mais a lhe ensinar; se quiser saber de algo, pergunte às Valkírias.
A volta foi feita num silêncio constrangedor – interrompido apenas nos momentos em que Took dava as indicações do caminho. Mas ninguém queria conversar com ninguém – Paulo, porque achava que Took o enganara; Chris, porque Paulo podia ficar aborrecido com seus comentários, achar que ela estava estragando tudo; e Took, porque sabia que o brasileiro estava decepcionado, e, por causa disso, não falaria sobre J. e suas técnicas.
– Você está errado em uma coisa – disse Paulo quando chegaram diante do trailer. – Não foi um anjo que encontramos ontem. Foi um sujeito numa caminhonete. Por uma fração de segundo, Chris achou que a frase ficaria sem resposta – a agressividade entre os dois era cada vez maior. O americano chegou a andar em direção à sua “casa”, mas de repente voltou-se.
– Vou lhe contar uma história que meu pai me contou – disse. – Um mestre e seu discípulo caminhavam pelo deserto, e o mestre ensinava que podiam confiar sempre em Deus, pois Ele tomava conta de tudo.
“Chegou a noite, e resolveram acampar. O mestre montou a tenda, e o discípulo ficou encarregado de amarrar os cavalos numa pedra. Mas, ao chegar à pedra, pensou consigo mesmo:
“‘O mestre está me testando. Disse que Deus toma conta de tudo, e me pediu para amarrar os cavalos. Quer ver se confio ou não em Deus.’
“Em vez de prender os animais, fez uma longa oração e entregou a guarda a Deus.
“No dia seguinte, quando acordaram, os cavalos haviam desaparecidos. Decepcionado, o discípulo foi se queixar ao mestre e disse que não confiava mais nele, pois Deus não cuidava de tudo, esquecera de vigiar os cavalos.
“‘–Você está errado’ – respondeu o mestre. ‘–Deus queria cuidar dos cavalos. Mas, naquele momento, precisava usar suas mãos para amarrá-los à pedra.’”
O rapaz acendeu um pequeno lampião a gás que estava pendurado do lado de fora do trailer. A luz ofuscou um pouco o brilho das estrelas.
– Quando começamos a pensar no anjo, ele começa a se manifestar. Sua presença se torna cada vez mais próxima, mais viva. Só que, num primeiro momento, eles se mostram como vêm fazendo ao longo de toda a vida: através dos outros.
“O seu anjo usou aquele homem. Deve ter retirado ele de casa cedo, mudado alguma coisa em sua rotina, ajeitado tudo para que ele pudesse estar ali justamente no momento em que vocês precisavam. Isto é um milagre. Não tente transformar num acontecimento comum.”
Paulo ouvia em silêncio.
– Quando íamos subir a montanha, esqueci a lanterna – continuou Took. – Você deve ter reparado que fiquei algum tempo no carro. Sempre que esqueço alguma coisa na hora de sair de casa, sinto que meu anjo da guarda está agindo. Está me fazendo atrasar uns poucos segundos – e esse pouco tempo pode significar coisas muito importantes. Pode me livrar de um acidente, ou fazer com que eu encontre alguém que necessitava.
“Por isso, depois que pego o que esqueci, sempre me sento e conto até vinte. Assim, o anjo tem tempo de agir. Um anjo usa muitos instrumentos.”
O americano pediu a Paulo que esperasse um pouco. Entrou no trailer, e voltou com um mapa.
– A vez mais recente em que vi as Valkírias foi aqui.
Apontou um lugar no mapa. A agressividade entre os dois parecia ter diminuído muito.
– Cuide dela – disse Took. – Foi bom ela ter vindo.
– Acho que sim – respondeu Paulo. – Obrigado por tudo.
E se despediram.
– Como tenho sido burro! – disse Paulo, dando um soco no volante, assim que se afastaram um pouco.
– Burro? Achei que você estava com ciúmes!
Mas Paulo estava rindo, de ótimo humor.
– Quatro processos! E ele só falou três! É com o quarto processo que se conversa com o anjo!
Ele virou-se para Chris. Seus olhos brilhavam de alegria.
– O quarto processo: a canalização!
Quase dez dias no deserto. Pararam num lugar onde o chão se abria numa série de feridas, como se rios pré-históricos tivessem corrido por ali, dezenas deles, deixando aquelas rachaduras compridas, fundas, que o sol se encarregava de tornar cada vez maiores.
Ali não existiam nem os escorpiões, nem as cobras, nem os coiotes, nem a sempre presente erva rasteira. O deserto estava cheio destes lugares chamados badlands, as terras malditas. Os dois entraram em uma daquelas imensas feridas. As paredes de terra eram altas, e tudo que podiam ver era um caminho tortuoso, sem começo ou fim.
Já não eram mais os dois aventureiros irresponsáveis, achando que nada de mau podia acontecer. O deserto tinha suas leis, e matava quem não as respeitasse. Haviam aprendido estas leis – os rastros de cobra, as horas de sair, as precauções com a segurança. Antes de entrar nas badlands, deixaram um bilhete no carro dizendo para onde se dirigiam. Mesmo que fosse por apenas meia hora, e aquilo parecesse desnecessário, ridículo, se acontecesse alguma coisa, um carro podia parar, e alguém veria o bilhete e saberia a direção que os dois tinham tomado. Precisavam facilitar a tarefa dos instrumentos do anjo da guarda.
Buscavam as Valkírias. Não ali, naquele final de mundo – porque nenhuma vida resiste por muito tempo nas badlands. Ali – bem, ali era apenas um treino. Para Chris. Mas as Valkírias estavam por perto, e alguma coisa parecia dizer isto. Deixavam rastros. Viviam pelo deserto, não paravam em nenhum lugar – mas deixavam rastros. Os dois tinham conseguido algumas pistas. No começo, haviam visitado uma cidadezinha após outra, perguntando pelas Valkírias, e ninguém ouvira falar delas. A indicação de Took não havia servido para nada – provavelmente tinham passado já há muito tempo pelo lugar que ele apontara no mapa. Mas um dia, num bar, encontraram um rapaz que se lembrava de ter lido algo a respeito delas. Então ele descreveu a roupa que usavam – e os rastros que deixavam.