— O que ele fez? — perguntou Jube.
Elmo riu para ele.
— Não é o que ele fez, é o que estava pensando em fazer. — O homenzinho empurrou as portas de vitrais com o cara de lula pendurado no ombro como um saco de cereais.
O Crystal Palace era a última parada. Jube deu um giro pelo bar principal – dificilmente ligava para as salas laterais e suas alcovas acortinadas – e vendeu mais alguns jornais. Então, subiu num banco. Sascha estava atrás do longo balcão de mogno, o rosto sem olhos e um bigode finíssimo refletiam no espelho enquanto misturava um planter’s punch. Pousou o copo diante de Jube sem falar nem receber pagamento algum.
Quando Jube bebericou o drinque, sentiu um vestígio de perfume familiar e virou a cabeça logo que Crisálida se sentou no banco ao seu lado.
— Bom dia — disse ela. A voz era suave, com sotaque levemente britânico. Usava uma espiral de purpurina prateada numa bochecha e, como a carne era transparente por baixo dela, parecia flutuar como uma nébula sobre a brancura do crânio. O batom era um brilho labial prata, e suas unhas longas reluziam como adagas. — Como vai a venda dos jornais, Jubal?
Ele sorriu para ela.
— Já ouviu a piada da noiva que tinha boas notícias e más notícias para o marido?
Em torno de sua boca, as sombras cinzentas fantasmagóricas dos músculos torceram os lábios prateados numa careta.
— Me poupe.
— Tudo bem. — Jube deu mais um gole no planter’s punch por um canudinho. — No Chaos Club eles botam um guarda-chuvinha neles.
— No Chaos Club eles servem drinques em cocos.
Jube bebericava o drinque.
— Aquele lugar na Divisa, onde filmam aquelas coisas hardcore? Ouvi que é uma operação dos Gambione.
— Notícia velha — Crisálida disse. Era hora de fechar. As luzes acenderam. Elmo começou a circular, empilhando cadeiras nas mesas e expulsando os clientes.
— O Troll será o novo chefe de segurança na clínica do Tachyon. O próprio doutor me disse.
— Ação afirmativa? — Crisálida perguntou, ironicamente.
— Em partes — disse Jube. — E em parte porque tem quase três metros de altura, é verde e quase invulnerável. — Ele sugou o restante do drinque fazendo barulho, e mexeu o gelo moído com o canudo. — O cara da delegacia tem uma pista sobre o carta selvagem.
— Não vão achar — Crisálida disse. — Se encontrarem, vão desejar não ter encontrado.
— Se tivessem juízo, perguntariam pra você.
— Não tem dinheiro suficiente no orçamento municipal pra pagar por essa informação — Crisálida comentou. — Que mais? Você sempre guarda o melhor para o final.
— Acho que nada — Jube falou, girando o banco para encará-la. — Mas ouvi falar que Gimli está voltando para casa.
— Gimli? — Sua voz era impassível, mas os olhos azuis profundos suspensos nas órbitas do crânio olharam para ele intensamente. — Que interessante. Tem detalhes?
— Ainda não — disse Jube. — Conto assim que souber.
— Tenho certeza de que contará. — Crisálida tinha informantes em todo o Bairro dos Curingas. Mas Jube, o Morsa, era um dos mais confiáveis. Todos o conheciam, todos gostavam dele, todos falavam com ele.
Jube foi o último cliente a deixar o Crystal Palace naquela noite. Quando saiu, começou a nevar. Ele limpou a garganta, pegou o chapéu com firmeza e arrastou-se pela Henry Street, puxando o carrinho vazio atrás dele. Uma patrulha surgiu quando ele passava por baixo da ponte de Manhattan, lentamente, e abriu o vidro.
— Ei, Morsa — o policial negro atrás do volante chamou. — Está nevando, curinga idiota. Vai congelar as bolas.
— Bolas? — Jube respondeu. — Quem disse que curingas têm bolas? Amo esse tempo, Chaz. Olhe para essas bochechas rosadas! — Ele beliscou a bochecha oleosa, negra azulada, e gargalhou.
Chaz suspirou, e abriu a porta traseira da viatura.
— Entra, vou te levar para casa.
A casa ficava num prédio espaçoso de cinco andares na Eldridge, uma viagem curta. Jube deixou o carrinho sob os degraus, ao lado das latas de lixo, enquanto abria a tranca do apartamento no porão. A única janela estava totalmente tapada por um ar-condicionado enorme e antiquíssimo, seu gabinete enferrujado estava naquele momento meio coberto de neve esvoaçante.
Quando acendeu as luzes, as lâmpadas avermelhadas de 15 watts na instalação superior enchiam a sala com um crepúsculo sombrio escarlate. Lá dentro era um frio de congelar os ossos, um pouco menos do que as ruas de novembro. Jube nunca ligava o aquecedor. Uma ou duas vezes ao ano, um homem da companhia de gás passava para verificar se ele não havia mexido no medidor.
Embaixo da janela, panelas de carne verde em decomposição cobriam o tampo de uma mesa de carteado. Jube tirou a camisa, que revelou um peito largo com seis mamilos, pegou de um copo de gelo para triturar e pegou o bife mais maduro que conseguiu encontrar.
Um colchão sem lençol cobria o chão do quarto e, no canto, sua mais nova aquisição, uma banheira de porcelana para banhos quentes novinha, ficava na frente de uma televisão com tela imensa. Exceto que “banhos quentes” não aconteciam, pois nunca havia usado o sistema de aquecimento. Aprendera muito sobre os humanos nos últimos vinte e três anos, mas nunca havia entendido por que queriam ficar imersos em água escaldante, ele pensou enquanto tirava a roupa. Até os takisianos tinham mais juízo que isso.
Segurando o bife com uma das mãos, Jube cuidadosamente entrou na água gélida e ligou a televisão com o controle remoto para assistir aos programas de notícias que havia gravado. Lançou o bife à boca larga e começou a mastigar a carne crua lentamente, enquanto flutuava ali, absorvendo cada palavra que Tom Brokaw tinha a dizer. Estava muito relaxante, mas, quando o programa acabou, Jube sabia que era hora de ir para o trabalho.
Saiu da banheira, arrotou e se secou com vigor numa toalha do Pato Donald. Uma hora, não mais, pensou consigo mesmo, enquanto caminhava pesadamente pelo quarto, deixando pegadas no assoalho de madeira. Estava cansado, mas tinha trabalho a fazer, ou ficaria ainda mais para trás. Em pé, no fundo do quarto, apertou uma longa sequência de números no controle remoto. A parede de tijolos à sua frente pareceu se dissolver quando apertou o último dígito.
Jube caminhou por aquilo que fora um porão de carvão. A parede ao fundo era dominada por um holocubo que fazia até a televisão parecer pequena. Um console com formato de ferradura contornava uma imensa poltrona de braços projetada para o corpo único de Jube. Em todos os lados da câmara aconchegante havia máquinas, algumas que teriam sido óbvias para qualquer aluno do ensino médio, outras que teriam deixado o próprio Dr. Tachyon estupefato.
Mesmo sendo primitivo, o escritório se adequava muito bem a Jube. Sentou-se na poltrona, ligou a alimentação por fusão celular e pegou uma haste cristalina do tamanho de um dedinho de criança de uma prateleira ao lado de seu cotovelo. Quando encaixou-a no orifício apropriado do console, o gravador acendeu-se por dentro, e ele começou a ditar as últimas observações e conclusões numa língua que parecia metade música, metade cacofonia, formada em parte iguais de gritos, assobios, arrotos e cliques. Se os outros sistemas de segurança falhassem, seu trabalho ainda estaria a salvo. No mais, não havia outro sensitivo no raio de quarenta anos-luz que falasse sua língua nativa.
Até a sexta geração
Walter Jon Williams
Prólogo
Ele ainda estava fumegando no ponto em que a atmosfera queimou sua carne. O sangue quente corria de suas narinas. Tentou fechá-las para manter o resto do líquido, mas perdeu a capacidade de controlar a respiração. Os fluidos tinham superaquecido durante a descida e se extinguido dos diafragmas como vapores de uma caldeira explodindo.