A resposta de Darlingfoot foi previsível, estúpida e representava uma improbabilidade anatômica de ordem superior. Croyd partiu atrás do cachorro marrom.
Quando Croyd se aproximou da esquina onde o tinham visto virar, ouviu uma série de uivos agudos. Chegando à rua lateral, viu o cachorro deitado de bruços, mordendo o pterodátilo, que o prendia na calçada. O membro arrancado jazia ao lado. Croyd avançou até lá.
— Obrigado, Kid. Te devo essa — disse ele; enquanto pegava a perna, hesitou, tirou o lenço, enrolou na mão, agarrou o membro e o segurou contra o vento.
A forma de pterodátilo escorreu, dando lugar à de um garoto nu — talvez com 13 anos de idade — com os olhos brilhantes e cabelos castanhos desgrenhados, uma pequena marca de nascença na testa.
— Peguei pra você, Croyd — ele anunciou. — Mas fede mesmo.
— É, Kid — disse Croyd. — Me desculpe. Agora preciso juntar os outros pedaços.
Ele se virou e apressou-se na direção de onde tinha vindo. Atrás dele, ouviu passos rápidos.
— Para que você quer isso? — o garoto perguntou.
— É uma história chata e complicada, e é melhor você não saber — ele respondeu.
— Ah, para com isso. Pode me falar.
— Não tenho tempo. Estou com pressa.
— Vai lutar com Devil John de novo?
— Não está nos meus planos. Acho que podemos chegar a um acordo sem recorrer à violência.
— Mas, se você lutar, qual é o seu poder desta vez?
Croyd chegou à esquina, cortando pelo canteiro central. Adiante, viu onde outro cachorro fuçava o cadáver. Devil John não estava em lugar algum.
— Inferno! — ele gritou. — Sai fora, xô!
O cachorro nem deu atenção a ele, mas arrancou uma camada de pelos da carapaça quitinosa. Croyd percebeu que do tecido rasgado pingava um líquido transparente. Os restos pareciam úmidos agora, e Croyd percebeu que os fluidos estavam vazando dos orifícios de respiração no tórax.
— Sai fora! — ele repetiu.
O cachorro rosnou para ele. De repente, o rosnado transformou-se num ganido e o rabo do animal sumiu entre as pernas. Um tiranossauro de um metro de altura passou por Croyd saltando, chiando furiosamente. O cão virou-se e fugiu. Um momento depois, Kid estava em pé no lugar dele.
— Ele está indo embora com aquele pedaço — o garoto disse.
Croyd repetiu o comentário de Darlingfoot sobre a mão enquanto deixava a perna sobre o corpo desmembrado. Ele retirou o saco de lixo dobrado do bolso interno do casaco e o sacudiu.
— Se quer ajudar, Kid, segure o saco enquanto jogo nele o que restou.
— Tudo bem. Isso é bem nojento.
— É trabalho sujo — Croyd concordou.
— Então, por que você está fazendo isso?
— É isso que acontece quando viramos adultos, Kid.
— Como assim?
— Você gasta cada vez mais tempo arrumando as coisas após as bagunças.
Um ruído de passadas pesadas e rápidas se aproximou, uma sombra passou por sobre eles, e Devil John estrondou no chão ao lado deles.
— Maldito cachorro, fugiu — ele anunciou. — Conseguiu a perna?
— Consegui — Croyd respondeu. — Já está no saco.
— Boa ideia… um saco plástico. Quem é o garoto pelado?
— Não conhece Kid Dinossauro? — Croyd perguntou. — Pensei que ele conhecesse todo mundo. É o pterodátilo que estava seguindo você.
— Por quê?
— Gosto de estar onde a ação está — Kid respondeu.
— Ei, por que você não está na escola? — Croyd quis saber.
— A escola é uma bosta.
— Peraí. Tive que parar a escola no nono ano e nunca voltei. Sempre me arrependi.
— Por quê? Você está tão bem.
— Há todas aquelas coisas que eu perdi. Não queria ter perdido.
— Tipo o quê?
— Bem… Álgebra. Nunca aprendi álgebra.
— O que tem de bom na álgebra?
— Não sei e nunca vou saber, porque não aprendi. E às vezes olho para as pessoas na rua e digo, “Cara, aposto que elas todas sabem álgebra”, e isso faz eu me sentir por baixo.
— Bem, eu não sei álgebra e isso não me faz sentir nem um pouco por baixo.
— Espere mais pra frente — disse Croyd.
Kid percebeu de repente que Croyd estava olhando para ele de forma estranha.
— Você vai voltar pra escola agora — Croyd falou para ele — e vai estudar pra caramba o resto do dia e fazer a lição de casa à noite, e vai gostar disso.
— Acho que é melhor eu ir voando — Kid disse, e transformou-se num pterodátilo, saltitando diversas vezes até pairar.
— Pegue algumas roupas no caminho! — Croyd gritou atrás dele.
— Que diabos está acontecendo aqui?
Croyd virou-se e deu de cara com um policial uniformizado que acabara de cruzar o canteiro central.
— Vá se foder! — ele resmungou.
O homem começou a desafivelar o cinto.
— Para, para! Cancela — disse Croyd. — Afivele o cinto. Esqueça o que eu disse e vá para outra rua.
Devil John ficou encarando enquanto o homem obedecia.
— Croyd, como você faz essas coisas? — ele perguntou.
— É o meu poder da vez.
— Então, você podia me fazer dar o corpo pra você, não podia?
Croyd pousou o saco de lixo no chão e o amarrou. Quando terminou a amarração, ele concordou com a cabeça.
— Claro. E conseguirei de um jeito ou de outro. Mas não estou a fim de trapacear com um camarada que trabalhou duro hoje. Minha oferta ainda é boa.
— Sete paus?
— Seis.
— Você disse sete.
— Tudo bem, mas agora não está tudo aqui.
— A culpa não é minha. Você me parou.
— Mas você deixou a coisa no chão onde os cachorros conseguiam pegar.
— Tá, mas como eu ia saber… ei, é um boteco ali na esquina.
— É mesmo.
— Se importa de discutir isso almoçando e tomando uma cerveja?
— Agora que você falou, estou com um pouco de fome — disse Croyd.
Sentaram-se à mesa da janela e deixaram o saco de lixo na cadeira vazia. Croyd foi até o banheiro e lavou as mãos diversas vezes, enquanto Devil John comprou duas cervejas. Quando voltou, o outro pediu meia dúzia de sanduíches. Darlingfoot fez o mesmo.
— Para quem você está trabalhando? — perguntou.
— Não sei — Croyd respondeu. — Estou trabalhando para terceiros.
— Complicado. Fico me perguntando para que eles querem essa coisa.
Croyd balançou a cabeça.
— Sei lá. Espero que haja o suficiente dele para a gente receber.
— Esse é um dos motivos pelos quais eu quero negociar. Acho que meus camaradas queriam o presunto num estado melhor. Vão tentar me passar a perna. Melhor um pássaro na mão, sabe? Não confio muito neles. Bando de malucos.
— Falaí, tinha alguma coisa nele?
— Não. Nenhum pertence.
Os sanduíches chegaram e eles começaram a comer. Depois de um tempo, Darlingfoot olhou diversas vezes para o saco de lixo, então comentou:
— Sabe de uma, parece que esta coisa tá maior.
Croyd examinou-a por um momento.
— Está acomodando e mudando — disse ele.
Eles terminaram de comer e pediram mais duas cervejas.
— Não, caramba! Está maior! — Darlingfoot insistiu.
Croyd olhou novamente. Parecia inchar a cada vez que olhava.
— Tem razão — reconheceu. — Devem ser os gases da… hum… decomposição.
Ele esticou um dedo, como se para cutucar, pensou melhor e abaixou a mão.
— Então, o que você me diz? Sete paus?
— Acho que é justo… pelo jeito que está.
— Mas eles sabiam o que estavam pedindo. Você tem que esperar esse tipo de coisa de um presunto.
— Um pouco, concordo. Mas tem que admitir também que balançou o bicho um bocado.
— É verdade, mas um normal poderia ficar melhor. Como eu ia saber que o cara era um caso especial?
— Olhando pra ele. Era pequeno e frágil.