— Foda-se a sua mãe, Bushmill — disse Travnicek, em eslovaco. Tomou a bebida da garrafa. — E foda-se você também, Victor Frankenstein. Se soubesse uma porcaria que fosse de programação de computador, nunca teria causado problemas.
A comparação com Frankenstein doía. Parecia que a imagem do ressurreicionista sempre o perseguia. Seu primeiro trabalho como professor no Ocidente foi na alma mater de Frankenstein, Ingolstadt. Odiou cada minuto que passou na Baviera. Nunca gostou muito dos alemães, especialmente no papel de modelos. O que poderia explicar sua demissão de Ingolstadt após cinco anos.
Agora, depois de Ingolstadt, depois do MIT, depois de Texas A&M, foi rebaixado a este apartamento. Por semanas, viveu num transe, sobrevivendo de comida enlatada, nicotina e anfetaminas, perdendo a noção primeiro das horas, então dos dias, seu cérebro fervilhante numa perpétua explosão de ideias, conceitos, técnicas. Num nível consciente, Travnicek mal sabia de onde vinha tudo aquilo; nesses momentos, parecia que algo nas profundezas de sua constituição celular estava falando com o mundo por meio de corpo e mente, contornando sua consciência, sua personalidade…
Sempre foi assim. Quando ficava muito obcecado por um projeto, tudo o mais ficava à margem. Sequer precisava dormir, a temperatura do corpo flutuava desenfreadamente, os pensamentos eram ligeiros e objetivos, conduzindo-o com coerência até o objetivo. Tesla, ele tinha lido, era igual — o mesmo espírito, anjo, ou demônio, que agora falava através de Travnicek.
Mas agora, no fim da manhã, o transe havia enfraquecido. O trabalho estava feito. Não tinha certeza de como… mais tarde teria de ir a fundo, peça por peça, e compreender o que havia realizado; suspeitava que tinha cerca de meia dúzia de patentes básicas ali que fariam dele um homem rico para sempre, mas isso aconteceria mais tarde, pois Travnicek sabia que logo a euforia desapareceria e o cansaço chegaria. Tinha de terminar o projeto antes disso. Tomou outro gole da bebida e sorriu, enquanto olhava o comprimento que dava ao apartamento uma aparência de estábulo.
O apartamento era iluminado por uma fileira fria de lâmpadas fluorescentes. Mesas improvisadas estavam cheias de moldes, barris, gravadores de ROM, computadores. Papéis, latas de comida vazias e cigarros amassados cobriam o piso grosseiro de madeira prensada. Ampliações dos desenhos de Leonardo da anatomia humana estavam grampeados nas vigas.
Atado ao fim da mesa estava um homem alto e nu. Não tinha cabelos e o tampo de seu crânio era transparente, fora isso parecia ter sido tirado dos melhores sonhos eróticos de Leonardo.
O homem na mesa estava conectado a outro equipamento por cabos elétricos grossos. Seus olhos estavam fechados.
Travnicek ajustou um controle no macacão de paraquedista camuflado. Não conseguia pagar aquecimento para o apartamento inteiro e, em vez disso, usava um conjunto elétrico projetado por seus designers para manter caçadores aquecidos enquanto rastejassem em esconderijos nos arbustos. Encarou as claraboias. A chuva parecia estar diminuindo. Bom. Não precisava do teatro barato de Victor Frankenstein, raio e trovão, como pano de fundo de sua obra.
Arrumou a gravata como se para uma plateia invisível — vestir-se adequadamente era importante para ele, e ele usava uma gravata e um paletó por baixo do macacão — e, então, apertou o botão que iniciaria os geradores de fluxo. Um lamento baixo encheu o apartamento, parecia uma vibração profunda que passava pelo assoalho. As lâmpadas fluorescentes no teto diminuíram e tremeluziram. Metade apagou-se. O lamento tornou-se um grito. O fogo de santelmo dançava entre as vigas do telhado. Havia um cheiro de queimado.
Travnicek ouviu indistintamente estampidos regulares. A senhora no apartamento de baixo estava batendo no teto com um cabo de vassoura.
O grito alcançou seu auge. Sons ultrassônicos fizeram as mesas de trabalho de Travnicek dançarem, e estilhaçaram a louça em todo o prédio. No apartamento de baixo, a televisão implodiu. Travnicek virou outro interruptor. O suor pingava de seu nariz.
O androide na mesa contorceu-se quando a energia dos geradores de fluxo foi despejada em seu corpo. A mesa brilhava com o fogo de santelmo. Travnicek mordia o tubo de papelão do cigarro. Uma ponta fumegante caiu despercebida no chão.
O som dos geradores começou a diminuir. Ao contrário do som do cabo de vassoura e das ameaças indistintas vindas de baixo.
— Você vai me pagar pela televisão, desgraçado!
— Enfia o cabo de vassoura no rabo, minha querida — disse Travnicek em alemão, o idioma ideal para as nojeiras.
As lâmpadas fluorescentes abaladas começaram a tremeluzir novamente.
Os desenhos sérios de Leonardo olhavam para o androide quando ele abriu os olhos escuros. As lâmpadas fluorescentes piscando davam um efeito estroboscópico que fazia o branco dos olhos parecer irreal. A cabeça virou-se, os olhos enxergaram Travnicek, então focalizaram. Sob a cúpula transparente que cobria o crânio, um disco prateado girava. O som do cabo de vassoura cessou.
Travnicek aproximou-se da mesa.
— Como você está?
— Todos os sistemas monitorados em funcionamento. — A voz do androide era grave e ele falava inglês americano.
Travnicek sorriu e cuspiu a ponta do cigarro no chão. Havia invadido um computador nos laboratórios de pesquisa da AT&T e roubado um programa que modelava a voz humana. Talvez pagasse royalty para a empresa telefônica Ma Bell um dia desses.
— Quem é você? — perguntou.
Os olhos do androide varreram o apartamento intencionalmente. Sua voz era prosaica.
— Sou Modular — disse ele. — Sou uma inteligência artificial de sexta geração multifuncional polivalente, um sistema de ataque defensivo-reativo flexível capaz de realizar ação independente enquanto equipado com armamentos de última geração.
Travnicek abriu um sorriso.
— O Pentágono vai amar isso — disse. — Quais são suas ordens?
— Obedecer ao meu criador, Dr. Maxim Travnicek. Resguardar sua identidade e bem-estar. Testar a mim mesmo e aos meus equipamentos sob condições de batalha, combatendo os inimigos da sociedade. Obter o máximo de publicidade para as futuras Empresas Modular ao fazê-lo. Preservar minha existência e bem-estar.
Travnicek sorriu para a criação.
— Suas roupas e módulos estão no armário. Pegue-os, pegue suas armas e saia para encontrar alguns inimigos da sociedade. Volte antes do pôr do sol.
O androide desceu da mesa e seguiu até um armário de metal. Abriu a porta.
— Insubstancialidade do campo de fluxo — disse ele, tomando uma unidade de conexão da prateleira. Com ela, poderia controlar seus geradores de fluxo para retirar o corpo suavemente do plano da existência, permitindo que se movesse através da matéria sólida. — Voo, 1.300 quilômetros por hora no máximo. — Outro módulo apareceu, um que permitiria aos geradores de fluxo manipularem a gravidade e a inércia de forma a produzir voo. — Receptor de rádio sintonizado às frequências da polícia. — Outro módulo.
O androide moveu um dedo abaixo do peito. Uma fenda invisível abriu-se. Ele afastou a carne sintética e a placa torácica de liga metálica, revelando seu interior. Um gerador de fluxo em miniatura emanava uma leve aura de santelmo. O androide conectou os dois módulos no esqueleto de liga metálica, então selou o peito. Havia uma conversa urgente na frequência da polícia.
— Dr. Travnicek — disse. — O rádio da polícia relata uma emergência no Zoológico do Central Park.
Travnicek gargalhou.
— Ótimo. Hora da sua estreia. Pegue as armas. Você pode ter que machucar alguém.
O androide puxou um macacão flexível azul-marinho.
— Canhão laser de micro-ondas — disse ele. — Lançador de granadas com granadas de gás sonífero. Pente com cinco granadas. — O androide abriu dois zíperes no macacão, revelando que duas entradas se abriram nos ombros, pelo visto espontaneamente. Puxou dois longos tubos do armário. Cada um tinha uma protuberância na parte de baixo. O androide encaixou as protuberâncias nos ombros, então tirou as mãos. Os canos das armas giraram, apontando para todas as direções possíveis.