Fortunato concordou com a cabeça. Sentia-se ele mesmo um estrangeiro naquele momento. Não conseguia ver outra coisa senão árvores e montanhas para onde quer que olhasse, exceto à direita, onde a igreja ficava no alto do monte, como um forte. Ele se sentia exposto, vulnerável. A natureza era algo que devia ter uma cidade ao redor.
— Um dia, a filha do xerife de Kingston desapareceu — Fairborn disse. — Isso deve ter sido no início de agosto de 1809. Dia de Lammas. Invadiram a casa de Balsam e encontraram a garota estirada e nua num altar. — A mulher mostrou os dentes. — É isso que a história diz. Balsam vestia uma roupa estranha e uma máscara. Tinha uma faca do tamanho do braço. Com toda a certeza ia esquartejá-la.
— Que tipo de roupa? — Fortunato perguntou.
— Túnica de monge. E uma máscara de cachorro, dizem. Bem, o senhor pode imaginar o resto. Eles o enforcaram, queimaram a casa, salgaram o chão, derrubaram as árvores da estrada que levava até lá.
Fortunato mostrou uma das moedas, Eileen ainda estava com a outra.
— Dizem que se chama moeda de Balsam. Significa alguma coisa para a senhora?
— Eu tinha três ou quatro como essa em casa. Elas aparecem no túmulo de vez em quando. “Tudo que desce tem que subir”, meu marido costumava dizer. Ele enterrou muitos dessa turma.
— Eles colocaram as moedas no túmulo dele? — Fortunato quis saber.
— Tudo que puderam encontrar. Quando queimaram a casa, encontraram um barrilzinho delas no porão. Vê como ela é vermelha? Deve ter sido feita com um alto teor de ferro ou algo assim. O povo na época dizia que ele colocava sangue humano no cobre. De qualquer modo, as moedas desapareceram do gabinete do xerife. A maioria das pessoas pensava que a mulher e o filho de Balsam fugiram com elas.
— Ele tinha família? — Eileen perguntou.
— Ninguém viu muito os dois, mas, sim, tinha mulher e um garoto pequeno. Fugiram para a cidade grande depois do enforcamento, ao menos é o que todo mundo sabe.
Enquanto voltavam por Catskills, ele conseguiu que Eileen falasse um pouco sobre si mesma. Ela nasceu em Manhattan, se formou em artes plásticas pela Columbia no fim dos anos de 1960, se interessou por ativismo político e trabalho social e saiu dele com as reclamações habituais.
— O sistema nunca mudou rápido o bastante pra mim. Acabei escapando pra história. Sabe? Quando você lê história consegue ver como tudo vai terminar.
— Por que história oculta?
— Não acredito nessas coisas, se é isso que você acha. Você está rindo. Por que está rindo de mim?
— Depois. Continue.
— É um desafio, é isso. Os historiadores normais não levam isso a sério. É muito amplo, tem tanta coisa fascinante que nunca foi documentada de forma adequada. Os hashishins, a cabala, David Home, Crowley. — Ela o encarou. — Peraí, me conta a piada.
— Você nunca perguntou nada sobre mim. O que foi bacana. Mas você deve saber que eu tenho o vírus. O carta selvagem.
— Sim.
— Ele me deu muito poder. Projeção astral, telepatia, consciência ampliada. Mas o único jeito de conseguir direcioná-la, fazê-la funcionar, é por meio de mágica tântrica. Tem algo a ver com energizar a espinha…
— Kundalini.
— Exato.
— Você está falando sobre mágica tântrica real. Penetração. Sangue menstrual. Tudo isso.
— Isso mesmo. Essa é a parte do carta selvagem.
— Tem mais?
— Tem o que faço pra ganhar a vida. Sou um agente. Cafetão. Cuido de uma série de garotas de programa que cobram até mil dólares por noite. Ainda não ficou nervosa?
— Não. Talvez, um pouco. — Ela lançou outro olhar de relance para ele. — É provavelmente uma estupidez o que vou dizer. Você não tem jeito de cafetão.
— Não gosto muito desse nome. Mas não fujo dele também. Minhas mulheres não são apenas putas. Minha mãe é japonesa e ela as treina como gueixas. Muitas têm doutorado. Nenhuma é viciada e, quando cansam da Vida, vão pra outra parte da organização.
— Você faz parecer algo bem moral.
Ela estava pronta para desaprovar, mas Fortunato não se deixaria intimidar.
— Não — disse ele. — Você leu Crowley. Ele não via utilidade na moralidade ordinária, nem eu. “Faça o que quiseres, há de ser tudo da Lei”. Quanto mais aprendo, mais percebo que tudo está aí, nessa única frase. É tanto uma ameaça quanto uma promessa.
— Por que está me dizendo isso?
— Porque gosto de você e me sinto atraído e isso não é necessariamente algo bom. Não quero que se machuque.
Ela colocou as mãos no volante e olhou para a estrada.
— Posso me cuidar sozinha — disse ela.
Você devia ter ficado de boca fechada, ele disse a si mesmo, mas sabia que não era verdade. Melhor afastá-la agora antes que ficasse ainda mais envolvido.
Poucos minutos depois, ela rompeu o silêncio.
— Não sei se eu deveria dizer isto a você ou não. Levei aquela moeda para alguns lugares. Livrarias especializadas em ocultismo, lojas de mágica, esse tipo de coisa. Só para ver o que conseguia descobrir. Conheci um cara chamado Clarke, na Miskatonic Bookstore. Ele pareceu muito interessado.
— O que disse a ele?
— Disse que era do meu pai. Disse que eu estava curiosa sobre ela. Ele começou a me fazer umas perguntas… se eu tinha interesse no ocultismo, se já tive experiências paranormais, esse tipo de coisa. Foi bem fácil falar o que ele queria ouvir.
— E?
— E ele quer que eu conheça algumas pessoas.
Alguns segundos depois, ela disse:
— Você ficou quieto de novo.
— Não acho que você deva ir. Essa coisa é perigosa. Talvez você não acredite no oculto. O fato é que o carta selvagem mudou tudo. As fantasias e crenças das pessoas agora podem se tornar realidade. E podem machucar você. Até matar.
Ela balançou a cabeça.
— É sempre a mesma história. Mas nunca uma prova. Você pode discutir comigo o caminho todo até Nova York e ainda assim não vai me convencer. A menos que eu possa ver com meus próprios olhos. Só não consigo levar isso a sério.
— Você é quem sabe — disse Fortunato. Ele liberou seu corpo astral e partiu à frente do carro. Ficou em pé na rodovia e ficou visível apenas quando o carro estava em cima dele. Pelo para-brisa ele conseguia ver os olhos de Eileen se arregalarem. Ao lado dela, seu corpo físico estava sentado com um olhar ausente. Eileen gritou, os freios guincharam, e ele se deixou voltar para o carro. Estavam deslizando na direção das árvores, e Fortunato pegou no volante para desviar. O carro morreu e deslizou sobre o acostamento.
— O que… o que…
— Desculpe — disse ele. Não conseguiu ser muito convincente.
— Era você lá, na estrada! — As mãos dela ainda seguravam o volante, e o tremor sacudia seus braços.
— Foi apenas uma… demonstração.
— Demonstração? Você me matou de susto!
— Não foi nada. Você entende? Nada. Estamos falando de um tipo de culto que tem algumas centenas de anos e faz sacrifícios humanos. No mínimo. Poderia ser pior, um inferno de tão pior. Não posso ser responsável por você se envolver.
Ela ligou o carro e voltou para a pista. Passaram-se 15 minutos, de volta para a 1-87, antes de ela dizer:
— Você não é mais totalmente humano, não é? Naquela hora você conseguiu me assustar. Mesmo assim, você diz que está interessado em mim. É sobre aquilo que estava tentando me alertar.
— Sim — disse ele.
A voz dela estava diferente, mais desprendida. Ele esperou que dissesse algo mais, mas ela apenas balançou a cabeça e pôs uma fita de Mozart no som.