— Vista-se — a voz disse. — Você está preso.
Deram para ele uma cela provisória. Tinha um chão de ladrilhos cinzentos e paredes de cimento pintadas de cinza. Ele se encolheu num canto. Tremia, fraco demais para se levantar. Na parede perto dele alguém tinha rabiscado uma figura de palitos com um pau gigante gotejando e bolas.
Por uma hora, não conseguiu se concentrar o suficiente para fazer contato com Eileen. Tinha certeza de que os maçons de Balsam a haviam matado.
Ele fechou os olhos. A porta da cela fechou numa batida no corredor e o trouxe de volta. Concentre-se, droga, pensou. Estava numa sala comprida com pé-direito alto. Uma luz amarelada refletia das paredes distantes a partir dos balcões de velas. O chão era de ladrilhos quadriculados pretos e brancos. Na frente do espaço havia duas colunas dóricas, uma de cada lado, que mal alcançavam o teto. Representavam o templo de Salomão e tinham os nomes Boaz e Joaquim, as primeiras duas Palavras Maçônicas.
Ele não queria tomar o controle do corpo de Eileen, embora pudesse, se fosse o caso. Ao que podia ver, ela estava bem. Conseguia sentir sua agitação, mas ela não estava sentindo dor ou, especialmente, medo.
Um homem que se encaixava na descrição que Eileen fez de Balsam estava na parte frontal da sala, no púlpito reservado para o Venerável Mestre do Templo. Sobre o terno preto vestia o jaleco branco maçônico com o galão vermelho brilhante. Vestia um tabardo como um babador gigante em torno do pescoço. Era branco também, com uma cruz ansata vermelha no centro. Um ankh.
— Quem responde por esta mulher? — Balsam perguntou.
Havia uma dúzia ou mais de outras pessoas na sala, de ambos os sexos, todos em jalecos e tabardos. Formavam uma linha sinuosa no lado esquerdo do salão. A maioria delas parecia bem normal. Um homem tinha uma pele vermelha brilhante e nenhum cabelo, obviamente um curinga. Outro parecia terrivelmente frágil, com óculos grossos e uma expressão atordoada. Era o único que não usava roupas normais sob o jaleco. Em vez disso, estava enrolado num manto branco alguns números acima do dele, com um capuz e mangas que pendiam de suas mãos.
Clarke saiu da fila e disse:
— Eu respondo por ela.
Balsam lhe passou uma máscara intrigante, coberta naquilo que parecia uma lâmina de ouro. Era uma cabeça de falcão, e cobria completamente o rosto de Clarke.
— Quem se opõe? — disse Balsam.
Uma mulher jovem, oriental, bem simples, mas com natureza sexual indefinível, deu um passo à frente.
— Eu me oponho.
Balsam entregou-lhe uma máscara com orelhas longas e pontudas e um rosto alongado. Quando ela a colocou, deu-lhe um olhar frio, desdenhoso. Fortunato sentiu o pulso de Eileen começar a aumentar.
— Quem a defende?
— Eu a defendo.
Outro homem deu um passo à frente e pegou a máscara com o rosto de Anúbis, o chacal.
O ar atrás de Balsam ondulou e começou a brilhar. As velas bruxuleavam. Aos poucos, um homem dourado tomou forma, iluminando a sala. Era quase da altura do teto, com feições caninas e olhos amarelos e quentes. Ele se ergueu com braços cruzados e olhou para baixo, na direção de Eileen. Seu pulso acelerou e se descompassou, e ela enterrou as unhas nas palmas das mãos. Ninguém parecia perceber que ele estava lá.
A mulher usando a máscara pontuda estava na frente de Eileen.
— Osíris — disse a mulher. — Sou Set, da companhia de Annu, filho de Seb e Nut.
Ele sentiu Eileen abrir a boca para falar, mas antes que ela pudesse dizer qualquer coisa, a mão direita da mulher estapeou seu rosto. Ela caiu de costas e deslizou quase um metro pelo ladrilho.
— Vejam — disse a mulher. Tocou com os dedos os olhos de Eileen e eles ficaram úmidos. — A chuva fertilizadora.
— Osíris — disse o homem com cabeça de chacal, caminhando até o lugar da mulher. — Sou Anúbis, filho de Rá, Aquele que abre os Caminhos. A Montanha do Funeral é minha. — Ele foi para trás de Eileen e levantou-a do chão.
Agora Clarke estava ajoelhando-se ao seu lado, o homem dourado pairando atrás dele.
— Osíris — disse ele. A luz brilhou de seus olhos pequenos da máscara de falcão. — Sou Hórus, teu filho e de Isis. — Ele apertou dois dedos contra os lábios de Eileen, forçando-a a abrir a boca. — Vim para te abraçar, sou teu filho Hórus, pressionei tua boca; sou teu filho, te amo. Tua boca estava fechada, mas eu arrumei para ti tua boca e teus dentes. Abro para ti teus dois olhos. Abri para ti tua boca com o instrumento de Anúbis. Hórus abriu a boca dos mortos, como nos tempos antigos abriu tua boca, com o ferro que surge de Set. Os mortos caminharão e falarão, e seu corpo estará com a grande companhia dos deuses na Grande Casa do Nascido em Annu, e ela receberá lá a coroa de ureret de Hórus, o senhor da humanidade.
Clark tomou de Balsam algo que parecia uma cobra de madeira. Eileen tentou afastar, mas o homem com cabeça de chacal a segurava com muita força. Clarke girou a cobra para trás e então tocou gentilmente a boca e os olhos de Eileen com ela quatro vezes.
— Ó Osíris, firmei para ti as duas mandíbulas em teu rosto, e agora elas estão separadas.
Ele se afastou para o lado. Balsam curvou-se sobre ela até seu rosto estar apenas a centímetros de distância e disse:
— Agora, dou-te o hekau, a palavra do poder. Hórus deu a ti o uso de tua boca e podeis dizê-la. A palavra é TIAMAT.
— TIAMAT — Eileen sussurrou.
Fortunato, atordoado pelo medo, avançou para a mente de Balsam.
O truque era manter-se em movimento, não ficar impressionado pela estranheza. Se mantivesse associações desencadeadoras, terminaria na parte da memória de Balsam que ele queria.
Naquele momento, Balsam estava próximo do êxtase. Fortunato seguiu as imagens e totens da mágica egípcia até encontrar as primeiras, e de lá percorreu o caminho até o pai de Balsam, e voltou por sete gerações até o próprio Black John.
Tudo que Balsam ouviu ou leu ou imaginou sobre seu ancestral estava ali. Sua primeira trapaça, quando matou o ourives Marano por seis onças de ouro fino. Sua fuga de Palermo. O encontro com o grego Altotas e o aprendizado da alquimia. Egito, Turquia, Malta e, finalmente, Roma, aos 26 anos, bonito, inteligente, carregando cartas de recomendação para a nata da sociedade.
Onde ele conheceu Lorenza. Fortunato a viu como Cagliostro, nua perante ele pela primeira vez, com apenas 14 anos, mas de uma beleza estonteante: magra, elegante, pele dourada, com cabelos ondulados de um preto intenso que caíam em torno dela, seios pequeninos e perfeitos, cheirando a flores selvagens costeiras, sua voz rouca gritando seu nome enquanto o envolvia entre as pernas.
Viajando pela Europa em carruagens forradas com veludo verde-escuro, a beleza de Lorenza abrindo a sociedade para eles sem reservas, vivendo daquilo que mendigavam nos corredores da nobreza e entregando o resto como esmolas.
E, finalmente, a Inglaterra.
Fortunato observou como Cagliostro cavalgava na floresta montado em um puro-sangue de caça cor de ébano. Ele se separou, não bem por acidente, de Lorenza e do jovem lorde inglês que se encantou por ela. Sem dúvida, Vossa Senhoria estava em seu caminho com ela, agora mesmo em alguma vala ao lado da estrada, e sem dúvida Lorenza já havia encontrada uma maneira de tirar vantagem.
Então, a lua caiu do céu no meio da tarde.
Cagliostro apressou o garanhão na direção da aparição reluzente. Ela aterrissou numa clareira a poucas centenas de metros. O cavalo não se aproximaria mais do que trinta metros, então Cagliostro o prendeu num arbusto e continuou a pé. A coisa era indistinta, feita de ângulos desencontrados, e quando Cagliostro avançou, uma parte da coisa se desprendeu… E foi tudo. De repente, Cagliostro estava cavalgando de volta para Londres numa carruagem com Lorenza, pleno de algum propósito elevado que Fortunato não conseguia entender.