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Estava acompanhando as idades da Terra, vagando com os ritmos de seus inúmeros pulsos, permeando suas teias da vida, boiando em suas marés, girando com o seu peso. A fratura sempre retornava, uma desjuntada dor distante e melancólica. E agora viajava sobre uma terra de luz; a luz era o tempo, as suas marés eram dias retrocedendo. A fratura que havia sentido, a segunda fratura, encontrava-se ao longe, diante dele, cruzando a terra, fina como um único fio de cabelo ao longo da paisagem de sonhos dos dias da Terra.

E subitamente ele estava lá.

Dançou vertiginosamente sobre a extremidade enquanto a terra de sonhos desprendia-se abruptamente abaixo dele, um precipício apavorante para o nada, e ele loucamente contorcia-se, agarrando o vazio, retorcido no espaço horrorizante, girando, caindo. Sobre o abismo rachado antes houvera outra Terra, outro antigo mundo, sem fraturas, antes forçosamente unido: duas Terras. Ele acordou.

Uma brisa fria tocou o suor febril em sua testa. O pesadelo tinha passado e levara junto suas forças. Curvado sobre os ombros, esfregou delicadamente os olhos com a ponta dos dedos. Finalmente, estava não só com sono como muito cansado. E quanto ao significado do sonho, se é que tinha algum, era algo que só pensaria pela manhã; agora ia para cama dormir mesmo. A sua cama, o seu sono.

Podia ver a sua casa lá longe e não estava entendendo aquilo. Sua silhueta estava recortada contra a luz da lua e ele reconheceu o seu formato quadradão. Olhou à sua volta e percebeu que estava uns quarenta centímetros acima das roseiras de um dos seus vizinhos, John Ainsworth. Aquelas roseiras eram delicadamente cultivadas, podadas no inverno, presas por bambus e etiquetadas, e Arthur se perguntou o que estava fazendo ali, pairando sobre elas. Depois se perguntou o que o mantinha no ar e, quando descobriu que nada o segurava, caiu desajeitado no chão.

Levantou, sacudiu a poeira e voltou mancando para casa com o tornozelo torcido. Despiuse e caiu na cama. Enquanto dormia, o telefone tocou novamente. Tocou por exatos quinze minutos e fez com que ele mudasse de posição na cama duas vezes. Nunca, porém, teve a menor chance de acordá-lo

capítulo 8

Arthur acordou sentindo-se ótimo, absolutamente fabuloso, descansado, superfeliz por estar em casa, cheio de energia e nada decepcionado ao descobrir que estava em meados de fevereiro.

Foi praticamente dançando até a geladeira, catou as três coisas menos assustadoras que estavam lá dentro, colocou-as no prato e observou-as fixamente por dois minutos. Já que não fizeram menção de se mexer durante esse período, chamou-as de café-da-manhã e comeu-as. Juntas, elas neutralizaram uma doença espacial virulenta que ele havia contraído sem saber nos Pântanos Gasosos de Flargathon alguns dias antes que, do contrário, teria matado metade da população do hemisfério ocidental, cegado a outra metade e deixado todo o resto psicótico e estéril, de modo que a Terra teve sorte.

Sentia-se forte, sentia-se saudável. Pegou uma pá e jogou fora as correspondências inúteis vigorosamente. Depois enterrou o gato.

Justo quando estava terminando o serviço, o telefone tocou, mas ele deixou tocar, mantendo um minuto de silêncio respeitoso. Seja lá quem fosse, ligaria novamente se fosse algo importante.

Limpou a lama dos sapatos e voltou para dentro de casa.

Conseguiu encontrar umas poucas cartas importantes no meio daquela montoeira de lixo alguns documentos do conselho, datados de três anos atrás, sobre a suposta demolição da sua casa e algumas outras cartas sobre a instauração de uma investigação pública sobre o plano de construção de um desvio na área; havia também uma carta antiga do Greenpeace, o de ativistas ecológicos para o qual contribuía ocasionalmente, pedindo ajuda para o seu projeto de libertar golfinhos e orcas do cativeiro e alguns cartões-postais de amigos, reclamando vagamente que ele nunca mais tinha dado notícias.

Juntou tudo isso e colocou num arquivo de papelão, no qual escreveu "Coisas Para Fazer". Já que estava se sentindo bastante vigoroso e dinâmico naquela manhã, chegou até mesmo a acrescentar a palavra "Urgente!".

Tirou a sua toalha e outras bugigangas esquisitas da sacola de compras que adquirira no Mega Mercado de Porto Brasta. O slogan impresso na sacola era um trocadilho inteligente e rebuscado no idioma centauriano, completamente incompreensível em qualquer outro idioma e, portanto, absolutamente sem sentido para uma loja de Duty Free em um espaçoporto. A sacola também estava furada, então ele a jogou fora.

Percebeu então que devia ter perdido outra coisa na pequena nave que o trouxera à Terra, gentilmente fazendo um desvio para deixá-lo próximo ao A303. Havia perdido a sua cópia surrada e desgastada daquilo que o ajudara a encontrar o seu caminho através das incríveis imensidões espaciais que ele cruzara. Havia perdido o Guia do Mochileiro das Galáxias.

“Bem”, pensou ele, "não devo precisar dele novamente." Tinha que fazer umas ligações.

Decidira como lidar com o volume de contradições que a sua volta para casa precipitara: ia simplesmente ignorá-lo.

Ligou para a BBC e pediu para falar com o diretor do seu departamento.

- Alô, oi, aqui quem fala é Arthur Dent. Escuta, desculpa ter faltado ao trabalho nos últimos seis meses, mas é que eufiquei maluco.

- Ah, não tem problema, não. Achei que fosse algo no gênero. Acontece o tempo todo por aqui. Quando é que você volta?

- Quando os porcos-espinhos param de hibernar?

- Durante a primavera, eu acho.

- Volto um pouquinho depois, então.

- Tudo bem.

Folheou as Páginas Amarelas e fez uma pequena lista com possíveis números de telefone.

- Alô, é do Hospital Old Elms? Bem, eu estou ligando para saber se posso dar uma palavrinha com Fenella, ah... Fenella. Meu Deus, como eu sou idiota, daqui a pouco vou esquecer o meu próprio nome, ah, Fenella - é ridículo, não é? É uma paciente de vocês, uma garota de cabelos escuros, deu entrada aí ontem à noite...

- Sinto muito, mas não temos nenhuma paciente chamada Fenella.

- Ah, não? Na verdade eu queria dizer Fiona, é claro, é que nós a chamamos de Fen...

- Sinto muito, adeus.

Click.

Seis conversas mais ou menos como essa começaram a desgastar o seu otimismo vigoroso e dinâmico, então decidiu que, antes que ele o abandonasse completamente, iria levá-lo par dar uma volta até o bar e exibi-lo para as pessoas.

Teve a idéia perfeita para explicar cada estranheza inexplicável sobre si mesmo de uma só

vez, e assoviou para si mesmo abrir ao porta que tanto o intimidara na noite anterior.

- Arthur!!!

Sorriu alegremente diante dos olhares perplexos que o contemplavam de todos os cantos do pub e contou para todo mundo como havia se divertido na Califórnia do Sul. capítulo 9

Aceitou outra cerveja e mandou ver.

- É claro, eu também tinha o meu alquimista particular.

- Você o quê?

Estava começando a falar besteiras e sabia disso. A mistura das melhores cervejas pretas da Exuberance, Hall e Wood-house era algo que impunha respeito, mas um dos seus primeiros efeitos era fazer com que você parasse de respeitar qualquer coisa, e a hora em que Arthur devia ter parado de explicar coisas foi justamente a hora em que começou a soltar sua criatividade.

- Isso aí! - insistiu ele com um alegre sorriso vidrado. - Por isso eu perdi tanto peso.

- Como assim? - perguntou a sua platéia.

- Isso aí! - repetiu ele. - Os californianos redescobriram a alquimia. Isso aí!

Sorriu novamente.

- Só que - disse ele - de um jeito muito mais útil do que aquele que... - Ele parou, pensativo, para deixar um pouquinho de gramática reunir-se na sua cabeça. - Aquele que os antigos costumavam praticar. Ou, pelo menos - acrescentou ele -, não conseguiam praticar. Eles não conseguiam fazer nada disso funcionar, sabem? Nostradamus e todo o pessoal. Não davam uma dentro.