- Não, não pára - pediu ela -, mas agora não é esse.
Arthur parou e olhou curioso, com a testa franzida, para o seu pé esquerdo no chão.
- Não pára.
Ele acariciou o pé direito dela, deslizou os dedos em torno do calcanhar, por baixo dos dedos, pelo peito do pé e disse:
- Quer dizer que tem a ver com qual das pernas eu estou segurando...?
Ela fez mais um daqueles movimentos de ombros que teriam alegrado a vida de uma simples almofada em Squornshellous Beta.
Ele franziu a testa.
- Me pega no colo - disse ela, baixinho.
Ele pousou o pé direito dela no chão e se levantou, Ela também ficou de pé. Ele a segurou em seus braços e eles se beijaram novamente. Ficaram assim por alguns instantes, ela disse:
- Agora me coloque de volta no chão.
Ainda confuso, ele obedeceu.
- E aí?
Ela o olhou, quase desafiadora.
- Qual o problema com meus pés? - perguntou ela.
Arthur ainda não estava entendendo. Sentou-se no chão, depois ficou agachado examinando os pés dela in loco, em seu habitat natural. E, ao olhar bem de perto, algo estranho o surpreendeu. Agachou a cabeça rente ao chão e olhou. Houve uma longa pausa. Depois sentou-se de volta, pesadamente.
- Sim - ele disse -, entendi o problema com os seus pés. Eles não encostam no chão.
- E aí... o que você acha?
Arthur olhou para ela depressa e viu uma apreensão profunda tornando os olhos dela subitamente escuros. Ela mordeu o lábio; estava tremendo.
- O que... - gaguejou ela - ...você está...? - Ela jogou o cabelo sobre os olhos, carregados de lágrimas escuras de medo.
Ele levantou-se imediatamente, abraçou-a e lhe deu um beijo.
- Talvez você consiga fazer o que eu faço - disse ele, saindo pela porta da frente do segundo andar, noite adentro.
O disco chegou naquela parte boa.
capítulo 23
A batalha prosseguia implacável sobre a estrela de Xaxis. Centenas de naves zirzlas, aterradoras e horrivelmente armadas, haviam sido esmagadas e reduzidas a átomos pelas forças devastadoras que a gigantesca nave xaxisiana prateada podia lançar. Uma parte da lua também se fora, destruída pelas mesmas armas flamejantes que rasgaram o próprio tecido do espaço ao passarem por ele.
As naves zirzlas que haviam sobrado, embora temivelmente armadas, estavam, naquele momento, irremediavelmente sobrepujadas pelo poder devastador da nave xaxisiana e procuravam se esconder atrás da lua, que se desintegrava rapidamente, quando a nave xaxisiana, em uma perseguição ensandecida, anunciou de repente que precisava de férias e abandonou o campo de batalha.
Houve um momento de medo redobrado e consternação, mas a nave de fato foi embora. Utilizando seus extraordinários poderes, afastou-se veloz pela vasta imensidão daquele espaço irracionalmente delineado, rapidamente, sem fazer esforço e, sobretudo, em silêncio. Recolhido em seu leito ensebado e fedorento, improvisado em uma escotilha de manutenção, Ford Prefect dormia em meio às suas toalhas, sonhando com antigos refúgios. Em algum momento sonhou com Nova York.
No sonho, estava caminhando tarde da noite pelo East Side, ao longo do rio que se tornara tão extravagantemente poluído que novas formas de vida já surgiam dele espontaneamente, exigindo planos de aposentadoria e direito de voto.
Uma dessas formas de vida flutuou perto dele, acenando. Ford acenou de volta. A coisa foi jogada na margem e esforçou-se para sair da água.
- Oi - disse ela. - Acabei de ser criada. Sou completamente ignorante em relação ao Universo, em todos os sentidos. Será que você pode me ensinar alguma coisa?
- Puxa - murmurou Ford, um tanto perplexo. - Bom, acho que posso te indicar uns bares.
- E sobre o amor e a felicidade? Sinto uma profunda necessidade de coisas assim - disse a criatura, balançando os tentáculos. - Alguma dica?
- Você pode encontrar algo próximo ao que procura na Sétima Avenida - disse Ford.
- Eu sinto, instintivamente - insistiu ela -, que preciso ser bonito. Sou?
- Você é bem direto, hein?
- Não faz sentido ficar enrolando. Sou ou não sou?
A criatura estava esvaindo-se pelo chão, chapinhando e debulhando-se em lágrimas. Um bebum nas proximidades começou a se interessar.
- Para mim? - perguntou Ford. - Não. Mas, escuta - acrescentou ele, após uma breve pausa
-, a maioria das pessoas se dá bem, sabe? Têm outros como você lá embaixo?
Sei lá, cara - respondeu a criatura. - Como eu disse, sou novo por aqui. A vida é
completamente estranha para mim. Como ela é?
Ali estava algo que Ford sentia que podia responder com autoridade.
- A vida - disse ele - é como um grapefruit.
- Tá, e como é isso?
- Bom, é meio amarelo-alaranjado, com uma casca dura do lado de fora, molhado e bem macio por dentro, onde tem uns caroços. Ah, e algumas pessoas comem metade no café-damanhã.
- Tem mais alguém aqui com quem eu possa conversar?
-Acho que sim - respondeu Ford. - Pergunte a um policial.
Recolhido em seu leito, Ford Prefect se contorceu e virou para o outro lado. Aquele não era o seu tipo de sonho favorito, porque não tinha Eccentrica Gallumbits, a Prostituta de Três Seios de Eroticon VI, que estrelava vários dos seus sonhos. Mas pelo menos era um sonho. Pelo menos estava dormindo.
capítulo 24
Por sorte havia uma forte corrente de ar na travessa, porque há muito tempo Arthur não fazia aquele tipo de coisa ou, pelo menos, não deliberadamente, e deliberadamente era exatamente a maneira como a coisa não deve ser feita.
Lançou-se bruscamente para baixo, quase quebrando o queixo na soleira da porta, e saiu trôpego pelo ar, tão subitamente embasbacado com a coisa profundamente idiota que tinha acabado de fazer que esqueceu completamente daquela parte de cair no chão estatelado, e não caiu.
Um belo truque, pensou ele, se você é capaz de fazê-lo.
O chão estava ameaçadoramente pendurado sobre a sua cabeça.
Tentou não pensar no chão, em como ele era extraordinariamente grande e como iria machucá-lo caso decidisse parar de ficar dependurado ali e caísse sobre ele de repente. Tentou, em vez disso, ter pensamentos agradáveis sobre os lêmures, o que era uma boa idéia, porque não conseguia se lembrar exatamente o que era um lêmure: se era uma daquelas coisas que percorrem em grandes hordas majestosas as planícies de sei lá onde ou se esses eram os gnus, de modo que era uma daquelas coisas peculiares para se pensar sem ter de recorrer apenas a um tipo grudento de boa vontade generalizada em relação às coisas e tudo isso manteve a sua mente bem ocupada enquanto o seu corpo tentava se ajustar ao fato de que não estar tocando em nada.
Um papel de chocolate Mars flutuava pela travessa.
Após um aparente momento de dúvida e indecisão, permitiu finalmente que o vento deixasse as coisas fluírem, flutuantes, entre ele e o chão.
- Arthur...
O chão continuava ameaçadoramente pendurado sobre a sua cabeça e ele sentia que provavelmente já estava na hora de tomar alguma atitude a respeito, como descer em direção a ele, e foi o que fez. Devagar. Muito, muito devagar.
Enquanto descia devagar, muito, muito devagar, fechou os olhos, com cuidado, para não esbarrar em nada.
A sensação dos seus olhos se fechando percorreu todo o seu corpo. Quando ela chegou aos pés e o corpo todo já estava avisado do fato de que seus olhos estavam fechados e não entrara em pânico por causa disso, ele virou devagar, muito, muito devagar o seu corpo para um lado e a sua mente para o outro.
Isso deveria resolver a questão do chão.
Podia sentir o ar puro sobre ele, ventando à sua volta alegremente, sem se incomodar com a sua presença e devagar, muito, muito devagar, como se acordando de um sono profundo e distante, ele abriu os olhos.