Pigarreou baixinho e tateou os bolsos. Estavam vazios, como ele estava cansado de saber. Com suavidade, mas com firmeza, pousou a mão esquerda na aba entreaberta da sua mochila. A mão sem corpo renovou a pressão no seu ombro direito.
- Veja bem - disse o barman e o seu rosto parecia oscilar com certa perversidade diante de Ford -, eu tenho uma reputação a zelar. Você entende isso, não entende?
“Chega”, pensou Ford. Não tinha outro jeito. Havia obedecido às regras, havia feito uma tentativa de boa-fé de pagar a sua conta e ela fora rejeitada. Estava agora correndo perigo de vida.
- Bem - respondeu ele, calmamente -, se é a sua reputação que está em jogo... Com súbita rapidez, abriu a mochila e socou no balcão seu exemplar do Guia do Mochileiro das Galáxias com o cartão oficial afirmando que ele era um pesquisador de campo do Guia e que não podia fazer, de jeito nenhum, o que estava fazendo naquele momento.
- Vai querer uma resenha?
O rosto do barman parou no meio de uma oscilação. O pássaro parou no meio de uma arranhada do balcão. A mão foi soltando aos poucos o ombro de Ford.
- Isso - disse o barman em um sussurro quase inaudível, por entre os lábios secos - resolve tudo, senhor.
capítulo 5
O Guia do Mochileiro das Galáxias é um órgão poderoso. Na verdade, a sua influência é
tão extraordinária que sua equipe editorial foi obrigada a criar regras severas para evitar o seu uso indevido. Por isso, nenhum dos seus pesquisadores de campo pode aceitar qualquer tipo de serviços, descontos ou tratamento preferencial de qualquer tipo em troca de favores editoriais, a não ser que:
a) tenham feito uma tentativa de boa-fé de pagar por um serviço de maneira convencional; b) suas vidas estejam em perigo;
c) estejam realmente a fim de fazer isso.
Já que invocar a terceira regra sempre envolvia uma pequena comissão para o editor, Ford preferia se entender com as duas primeiras.
Saiu do bar, caminhando alegremente pela calçada.
O ar estava abafado, mas ele gostava porque era um ar abafado urbano, repleto de cheiros emocionantemente desagradáveis, música perigosa e o som distante de tribos policiais em guerra.
Carregava a mochila com um gingado despretensioso, pronto para dar um belo safanão em quem tentasse apanhá-la à sua rvelia Tudo o que ele possuía estava lá dentro e, no momento ,
.
não era lá grande coisa.
Uma limusine passou em disparada, desviando das pilhas de lixo em chamas e assustando um velho animal de carga, que cambaleou, urrando, tentando não ser atingindo pelo carro. Ele foi parar contra a vitrine de uma loja de ervas medicinais, disparando um alarme estridente, e seguiu capengando rua baixo até os degraus de uma pequena cantina italiana, onde fingiu tropeçar e cair nas escadas porque sabia que ali seria fotografado e receberia alguma comida. Ford caminhava rumo ao norte. Achou que provavelmente estava a caminho do espaçoporto, mas já tinha pensado isso. Sabia que estava passando pela parte da cidade onde os planos das pessoas costumavam mudar abruptamente.
- Quer se divertir? - perguntou uma voz, saída de uma porta aberta.
- Que eu saiba - respondeu Ford -, já estou me divertindo. Obrigado.
- Você é rico? - perguntou outra voz. Aquilo fez Ford rir.
Ele se virou e abriu bem os braços.
- Por acaso pareço rico? - perguntou.
- Sei lá - disse a garota. - Talvez sim, talvez não. Talvez você fique rico. Eu ofereço um serviço muito especial para os ricos...
- Ah, é? - disse Ford, intrigado, mas cauteloso. - E como é isso?
- Eu digo a eles que não há nada de errado em ser rico.
Tiros espocaram, vindos de uma janela bem acima deles, mas era só um baixista sendo fuzilado por ter tocado um riff errado três vezes seguidas. A cotação dos baixistas estava em baixa em Han Dold City.
Ford parou e tentou distinguir alguma coisa dentro da entrada escura.
- Você o quê? - perguntou ele.
A garota riu e deu um passo à frente, saindo das sombras Era alta e tinha aquele tipo de timidez altiva que funciona superbem para quem sabe fazer direitinho.
- É a minha especialidade - continuou ela. - Fiz mestrado em economia social e posso ser bem convincente. As pessoas adoram. Principalmente nesta cidade.
- Goosnargh - disse Ford Prefect. Aquela era uma palavra betelgeusiana que ele usava quando sabia que devia dizer algo mas não sabia exatamente o quê. Sentou-se em um degrau e tirou da mochila uma garrafa de Aguardente Janx e uma toalha. Abriu a garrafa e limpou o gargalo com a toalha, o que produziu um efeito contrário ao pretendido, no sentido que a Aguardente Janx matou instantaneamente os milhões de germes que estavam aos poucos criando uma civilização bastante complexa e esclarecida nas manchas mais fedorentas da toalha.
- Quer? - ofereceu ele, depois de ter tomado um trago.
Ela deu de ombros e apanhou a garrafa.
Ficaram sentados por um tempo, ouvindo tranqüilamente a algazarra de alarmes contra roubo vinda do quarteirão vizinho.
- Acontece que estão me devendo muito dinheiro - disse Ford -, então, se algum dia eu conseguir receber, posso vir aqui e procurar você?
- Claro, estarei aqui - respondeu a garota. - Mas quanto é "muito", no seu caso?
- Salário atrasado por quinze anos de trabalho.
- Por...?
- Escrever duas palavras.
- Zarquon - disse a garota. - Qual delas levou mais tempo?
- A primeira. Depois que eu consegui a primeira, a segunda me ocorreu naturalmente numa tarde após o almoço.
Uma bateria eletrônica enorme foi arremessada pela janela e se espatifou na calçada diante deles.
Logo ficou claro que alguns dos alarmes contra roubo no quarteirão vizinho haviam sido disparados de propósito por uma tribo policial para armar uma emboscada para a outra. Viaturas com sirenes histéricas dirigiram-se para o local, apenas para serem recebidas com uma saraivada de tiros disparados por helicópteros que surgiram com um estrondo por entre gigantescos arranha-céus da cidade.
- Na verdade - disse Ford, tendo que gritar por causa da barulheira -, não foi bem assim. Eu escrevi coisa à beca, mas eles cortaram tudo.
Tirou a sua cópia do Guia de dentro da mochila.
- Então o planeta foi demolido - gritou ele. - É o tipo de trabalho que realmente valeu a pena, né? Mas, de qualquer jeito, eles têm que me pagar.
- Você trabalha pra isso? - gritou a garota de volta.
- Trabalho.
- Legal.
- Quer ver o que escrevi? - berrou ele. - Antes que apaguem? As novas revisões vão ser lançadas hoje à noite na rede. A essa altura, alguém já deve ter descoberto que o planeta onde fiquei por quinze anos foi demolido. Eles não atualizaram nas últimas revisões, mas não vão poder ignorar isso pra sempre.
- Está ficando impossível conversar, não?
- O quê?
Ela deu de ombros e apontou para cima.
Havia um helicóptero sobre eles que parecia estar envolvido em um conflito paralelo com a banda do andar de cima. Nuvens de fumaça saíam do prédio. O engenheiro de som estava pendurado pelos dedos na janela e um guitarrsta enlouquecido estava batendo nos seus dedos com uma guitarra em chamas. O helicóptero estava atirando em todos eles.
- Será que podemos sair daqui?
Desceram a rua, fugindo do barulho. Cruzaram com um grupo de atores de rua - eles tentaram apresentar um pequeno esquete sobre os problemas do centro decadente da cidade mas acabaram desistindo e desaparecendo dentro daquele restaurante recentemente freqüentado pelo animal de carga.
Durante todo esse tempo, Ford estava remexendo no painel de interface do Guia. Enfiaram-se em um beco. Ford se sentou sobre uma lata de lixo enquanto as informações começaram a surgir na tela.