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Acenei que sim, vagamente, percebendo só, por enquanto, que nada por enquanto percebia.

O meu visitante, que fitara o chão um momento, tornou em breve a erguer a cabeça.

— A sociedade compõe-se de três camadas distintas. A primeira é a dos criadores de mitos, e é a verdadeira aristocracia. Propriamente há criadores e transformadores de mitos — os homens de génio e os de talento, tomando cada palavra um sentido de valia mais alto que geralmente se lhe concede. — A segunda camada é a dos □[15]. Um soldado que se bate por Napoleão sente em si uma vida mais vasta e grande que o homem que passa na vida nulo, e anónimo para si mesmo.

— Mas, nesse caso, porque protestas contra os mitos revolucionários e radicais modernos?

— Porque esses têm a pretensão de não ser mitos…

— Mas todo o mito, para ter força, tem que impor-se com verdade. Não há cristãos onde se considera como mito o mito cristão.

— Não é bem isso… os mitos revolucionários tenndem a destruir a única realidade, que é a distinção de classes. Aí é que está a sua inutilidade e a sua falsidade social. Que se defenda uma aristocracia diferente da actual, entende-se; mas que se não defenda aristocracia nenhuma…

— Mas pode defender-se uma aristocracia de trabalho, segundo os próprios mitos radicais…

— Propriamente não se defende, mas admita-se que sim… Ora o trabalho não pode ser um mito, porque é uma realidade. Sim: produzir é criar realidade, isto é, coisas inteiramente inúteis. Um mito é a criação de irrealidades isto é, coisas úteis, vivas, que duram e perduram. De todas as indústrias modernas, disse ele, aquela que, sendo embora exercida em larga escala, o é contudo ainda de um modo inteiramente empírico, é a industria política. Ora o caminho natural da invenção — e a nossa época é acentuadamente uma época inventiva — é o de encontrar fórmulas científicas, e processos derivados dessas fórmulas, para eliminar o empirismo, a grosseria técnica, que é o primeiro estádio inevitável de qualquer arte ou de qualquer indústria. Por que razão não se teria ainda alguém lembrado de introduzir a ciência e a técnica racional no empirismo político, destruindo-o e aperfeiçoando a política? Pela simples razão que ninguém ainda disso se tinha lembrado. Até o primeiro que se lembra, ninguém se lembrou, em coisa nenhuma. Ora a minha firma foi a primeira que reparou que estava ainda livre o campo inventivo na indústria política. A minha firma inventou os processos técnicos desta indústria.

* * *

E desapareceu, sem mala e sempre sem o sorriso, do meu limitadíssimo horizonte.

O filatelista

(A inutilidade de dar conselhos)

Eu não aconselho. Colecciono selos. Para dar conselhos é preciso estar absolutamente seguro de que os conselhos são bons, e para isso é preciso estar certo (o que em absoluto ninguém está) que se está na posse da verdade. E, depois, é preciso saber se esses conselhos se adaptam ao indivíduo a que se estão dando, e para isso é preciso conhecer-lhe a alma toda, o que nunca se pode dar. E, além disto, ainda há que o modo de dar os conselhos deve ser exactamente o adaptado àquela alma; aconselham às vezes coisas que não se quer que se façam para, combinadas com elementos outros da alma aconselhada, darem o resultado que se quer. Só gente muito ingénua dá conselhos.

O que nós temos por verdade é apenas a mais provável, ou a mais improvável de várias probabilidades. Assim, qualquer indivíduo, por normalmente certo que no assunto se sinta, não pode jurar, com absoluta consciência intelectual, não só de que tal indivíduo do sexo masculino é seu pai, mas também de que tal outro, do sexo feminino, é sua mãe. Para crer que quem é tido por seu pai o é realmente, o mais que ele tem é, não lhe constando que sua mãe tivesse traído o marido, o julgue que não o fez nunca. Para ter certeza, intelectual, de que tal indivíduo é pai de outro era preciso ter assistido ao acto da fundação, ter inspeccionado de perto a fecundidade — de modo a não haver certeza □ — e ainda assim restava a ideia de paternidade metafisicamente considerada para mais embrulhar o assunto. Quanto a um indivíduo não poder afirmar que tal mulher é sua mãe, quem lhe diz que, parido por ela um ente masculino, este não foi substituído por outro parido, pela ama por exemplo, e por hipótese? O mais que se pode dizer é que isto é improvável — ou antes, que é menos provável que a hipótese contrária. Mas certeza certa propriamente não a há.

O que chamamos verdade não o é para certezas, é o que envolve uma improbabilidade menor, uma maior soma de probabilidades. Tanto basta para entreabrir a porta ao suspeitar. E uma porta entreaberta, porque não é uma porta fechada, é uma porta aberta. O suspeitar entra.

A afirmação que o mundo pode bem ser ilógico peca por querer explicar pelo «não ter explicação». Porque não pode o mundo ser ou lógico ou ilógico. E porque não outra coisa ainda que não seja nada?

Três males humanos:

O da acção.

O do pensamento.

O do sentimento — o precisar sentir qualquer coisa ante qualquer coisa.

A dúvida é a certeza de não estar certo.

Sentir talvez afirme de mais.

Trés ilusóes da acção humana:

— a do pensamento — a ilusão de explicar e resolver.

— a do sentimento — a ilusão de valorizar; ante uma coisa,

de ter de sentir qualquer coisa.

— a da vontade — de agir para qualquer coisa.

— só conhecemos as nossas absorções.

Como encontrar um motivo para agir? Um critério para pensar?

A dúvida é a certeza de não estar certo. Sentir talvez afirme de mais.

O automóvel ia desaparecendo

Eu explico como foi (disse o homem triste que estava com uma cara alegre), eu explico como foi…

Quando tenho um automóvel, limpo-o. Limpo-o por diversas razões: para me divertir, para fazer exercícios, para ele não fícar sujo.

O ano passado comprei um carro muito azul. Também limpava esse carro. Mas, cada vez que o limpava, ele teimava em se ir embora. O azul ia empalidecendo, e eu e a camurça é que ficávamos azuis. Não riam… A camurça fícava realmente azuclass="underline" o meu carro ia passando para a camurça. Afinal, pensei, não estou limpando este carro: estou-o desfazendo.

Antes de acabar um ano, o meu carro estava metal puro: não era um carro, era uma anemia. O azul tinha passado para a camurça. Mas eu não achava graça a essa transfusão de sangue azul.

Vi que tinha que pintar o carro de novo.

Foi então que decidi orientar-me um pouco sobre esta questão dos esmaltes. Um carro pode ser muito bonito, mas, se o esmalte com que está pintado tiver tendências para a emigração, o carro poderá servir, mas a pintura é que não serve. A pintura deve estar pegada, como o cábelo, e não sujeita a uma liberdade repentina, como um chinó. Ora o meu carro tinha um esmalte chinó, que saía quando se empurrava.

Pensei eu: quem será o amigo mais apto a servir-me de empenho para um esmalte respeitável? Lembrei-me que deveria ser o Bastos, lavador de automóveis com uma Caneças de duas portas ñas Avenidas Novas. Ele passa a vida a esfregar automóveis, e deve portanto saber o que vale a pena esfregar.

Procurei-o e disse-lhe: «Bastos amigo, quero pintar o meu carro de gente. Quero pintá-lo de um esmalte que fique lá, com um esmalte fiel e indivorciável. Com que esmalte é que o hei-de pintar?»

«Com BERRYLOID», respondeu o Bastos, «e só uma criatura muito ignorante é que tem a necessidade de me vir aqui magar com uma pergunta a que respondería do mesmo modo o primeiro chauffeur que soubesse a diferença entre um automóvel e uma lata de sardinhas».

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15

□ — espaço em branco deixado pelo autor.