O burro e as duas margens
É costume contar-se às crianças, quando começam a estar em idade de começar a ser estúpidas, uma história a propósito de um burro que chega à margem de um rio e não consegue passar para a outra margem.
O rio não tem ponte, o burro não sabe nadar, não há barco que o transporte. O que faz o burro? Depois de algum tempo de pensar, a criança diz que desiste. E então a pessoa adulta, que lhe pôs a adivinha, diz: O mesmo fez o burro. O que devia dizer era: És como o burro, porque assim é que a graça tem graça, se é que a tem.
Mas a história não se passou assim, e foi o burro mesmo que ma contou. O burro chegou à margem do rio, e queria passar para a outra margem. Verificou, efectivamente, e nesse particular a história é verídica como se narra, que (a) não havia ponte, (b) não havia barco, (c) ele, burro, não sabia nadar.
Então o burro pensou: O que faria um homem no meu caso? E, depois de pensar, pensou: Desistia. Pois bem, decidiu: Sou como o homem.
Porque, nesta adivinha, ninguém pensou numa coisa: é que o homem desistia também.
A política partidária é a arte de dizer a mesma coisa de duas maneiras diferentes. O melhor é dizer em segundo lugar, porque como é o homem que faz a adivinha, adiante vai o burro.
O Soares e o Pereira
O Soares e o Pereira, empregados do mesmo escritório, eram inimigos de alma. Não havia questão de serviço, ainda que rigorosamente não pudesse surgir conflito entre os dois, em que não surgisse conflito entre os dois. E, embora nunca seguissem por aquelas vias chamadas de facto, fervia em pouco tempo a descompostura mútua. De besta para cima e para baixo, todos os arredores de malandro, com passagem por gatuno e grande escala por tudo, encontrarem-se era discordarem, olharem-se era a primeira palavra de se descomporem.
Um dia o Soares, que era o mais inteligente e por isso o mais estúpido dos dois, referindo, fora do escritório, a um amigo as cenas habituais com o Pereira, recebeu desse a pergunta: «Mas porque diabo é que tu não o esmagas com uma coisa pior que todas as piadas?» «Que coisa?», perguntou o Soares; «porrada?». «Não, não digo isso… Melhor que isso: o silêncio… Ele tem mais piada que tu; pois bem, arranja mais desprezo do que ele. Ele insulta mais, e tu olhas para ele e não dizes nada. Ele insulta mais, e tu na mesma. Ele espuma e esbraveja, e tu idem e igualmente zero. Verás que não há piada que ele possa dizer que valha o que tu não dizes. O que tu não dizes pode ser tudo; o que ele diz não pode ser senão o que ele diz, e, se calhar, muitas vezes nem isso é».
O Soares pensou e achou razão, pelo menos provisória, ao conselho. E, ao contrário do que a prudência manda, seguiu-o. Mas, como é costume suceder quando se não segue a prudência, fez bem.
Foi logo no dia seguinte, porque era todos os dias, e o dia seguinte não era feriado. Surgiu um incidente que o Pereira fez o Soares ter feito surgir. E, sob os ouvidos fitantes do outro pessoal, o Pereira começou. Os substantivos do costume uniram-se aos adjectivos da vizinhança, e o carácter, habilitações, possibilidades penais, e outros atributos de um Soares de retórica, fulguraram no discurso. A certa altura, como o Soares não dissesse nada, mas olhasse para o orador com uma atengáo despreocupada e vaga, o Pereira começou a afrouxar. Seguiu a cena, de calado a pasmo, e o Pereira, afrouxando cada vez mais, foi-se tornando lívido. Ao fim de cinco minutos estava quase mudo e com a voz e a expressão do olhar em vésperas de lágrimas. Então engoliu um pouco; e, dirigindo-se ao Soares numa voz trémula, disse: «Ó Soares, você está zangado comigo?»
Si vis bellum, para pacem.
O cristão e o católico
Passeavam um dia juntos um cristáo e um católico. Disse de repente o católico para o seu inimigo: «Meu amigo, creio que estamos de acordo». E o outro não disse nada, porque todas as nações que falaram concordaram em que o silêncio é de ouro.
E então o católico começou:
— Concorda, não é verdade, em que a verdadeira Igreja é aquela que se firma no rochedo de Pedro?
E o outro respondeu: «Não concordo».
— Concorda, não é verdade, em que a verdadeira Igreja é aquela que se firma na mais antiga tradição?
E o outro respondeu: «Não. Não concordo».
— Concorda, não é verdade, em que a verdadeira Igreja é aquela que reúne os místicos e os soldados, os ascetas e os grandes pecadores?
E o outro respondeu: «Não posso concordar».
— Concorda, não é verdade, em que a verdadeira Igreja é a Igreja de Cristo?
E o outro respondeu: «Sim, talvez, não sei se concordo».
— Concorda, não é verdade, em que a verdadeira Igreja é a que quer o bem da humanidade?
E o outro respondeu: «Com reservas, concordo».
— Concorda, não é verdade, em que a verdadeira Igreja é a que for a verdadeira Igreja?
E o outro respondeu: «É claro que concordo».
— Se estamos, pois, de acordo — disse o católico —, vamos jantar juntos.
Assim fizeram, e como o católico não ficou ofendido e doesse ao cristão a possibilidade de o haver ofendido, foi o católico que comeu com vontade e o cristáo quem, por sua vontade, pagou a conta.
Esta pergunta, mas da qual — a resposta de Lope de Vega, que se está em 1900.
O papagaio
Havia em um dos arrabaldes de Lisboa um homem chamado Silva. Este Silva casou, já pouco jovem, com uma viúva que tinha uma filha quase mulher. A mulher do Silva passou logo a dominá-lo; e a enteada, à medida que crescia, mais e mais ajudava a mãe no dominio do padrasto.
O Silva passou a ser um trapo humano. Deixou de ter personalidade, vontade e lugar. Em tudo na vida doméstica como na prática, era um servo da vontade da mulher, quando o não era da vontade, por vezes até espontânea, da filha déla.
Como o domínio gera o desprezo, e o desprezo permite tudo, a mulher do Silva, apesar de não ser de espírito leviano, foi levada, pelas circunstáncias, a trair o marido. O amante, que era um indivíduo que fora promovido a primo déla para efeitos decorativos, foi elevado a quase residente na casa, e o Silva que não podia ignorar a sua categoria sexual, tinha que o receber, que lhe sorrir bem e que lhe exprimir, por palavras e modos, o prazer que lhe dava a sua excessiva visita. E assim fazia o Silva.
Mais tarde, conseguiu a mulher do Silva que o amante fosse nomeado por este gerente e mandatário das suas propriedades, dele Silva. E assim seguia e se consumava o domínio do marido, mero animal pagante naquela engrenagem de domesticação.
Ora o Silva tinha um papagaio — ave já velha e nem por isso muito esperta: gritava mais do que falava, e, quando falava, era sempre a mesma coisa. Um dia a mulher do Silva, maçada, muito naturalmente, com o vozear do pássaro, ergueu-lhe o poleiro da escápula sobre o quintal e vendeu-o a um viandante qualquer.
Quando o Silva voltou, à noite, para casa, e lhe faltou, de aí a minutos, a voz rouca da ave, procurou-a na escápula da parede sobre o quintal, não a viu, e foi à casa de jantar perguntar à mulher por ele.
«Vendi-o» disse ela, e enteada ria. O Silva retirou-se como de costume, sem dizer nada.
Foi, porém, ao quarto de cama, tirou o revólver da gaveta da mesa de cabeceira, voltou à casa de jantar e, com dois tiros calmos, certos e sucessivos, matou a mulher e a enteada.