O Gato então disse que chegaria depois e os encontraria lá. Tinha uma coisa que fazer antes. Ia avisar a Dalva para que não o esperasse essa noite.
E agora estavam ali, no Ponto das Pitangueiras, esperando que o guarda se alistasse. Escondidos no vão de um portal, não falavam. Ouviam o voo dos morcegos que atacavam os sapotis maduros nos pés. Finalmente, o guarda andou, eles ficaram espiando até que a sua figura desapareceu na curva que a rua fazia. Então atravessaram e entraram na alameda das chácaras e novamente se esconderam num portal. O homem não tardou muito. Saltou de um automóvel na esquina, pagou a corrida e veio subindo a alameda. Tudo o que se ouvia eram os seus passos e o rumor das folhas que o vento balançava nas árvores. Quando o homem vinha próximo, Pedro Bala saiu do portal.Os outros vieram logo depois e como que o guardavam, pareciam dois guarda-costas. O homem se aproximou mais do muro junto ao qual vinha andando. Pedro caminhava para ele. Quando estava defronte, parou:
- Pode me dar o fogo, senhor? - levava na mão um cigarro apagado.
O homem não disse nada. Sacou a caixa de fósforos, estendeu ao menino. Pedro riscou um e, enquanto acendia o cigarro, olhou para o homem. Depois, ao entregara caixa de fósforos, perguntou:
- É o senhor que se chama Joel?
- Porquê? - quis saber o homem. - Foi o Querido-de-Deus que nos mandou.
João Grande e o Gato se aproximavam. O homem mirou os três com espanto:
- Porém são uns meninos! Isso não é negócio para - Diga o que é, a gente sabe fazer o trabalho direito - retrucou Pedro Bala, quando os outros dois tinham se aproximado.
- Mas se um negócio que talvez nem homens... - e o homem pôs a mão na boca, como quem teme ter dito mais do que convinha.
- Nós sabe guardar um segredo tão bem como um cofre. E Capitães da Areia sempre faz os serviços bem feito...
- Os Capitães da Areia? Esse grupo de que falam os jornais? meninos abandonados? São vocês?
- É a gente, sim. E dos que manda.
O homem parecia refletir. Enfim se decidiu:
- Eu preferia entregar esse negócio a homens. Mas como tem que ser esta noite mesmo... O jeito...
- Vai ver como a gente sabe trabalhar. Não fique assustado.
- Venham comigo. Mas deixem que eu vá na frente. Vocês irão uns passos atrás de mim.
Os meninos obedeceram. Num portão o homem parou, abriu, ficou esperando. Veio de dentro um grande cão que lhe lambia as mãos. O homem fez os três entrarem, atravessaram uma rua de árvores, o homem abriu a porta da casa. Entraram para uma saleta, o homem pôs a capa e o chapéu numa cadeira e sentou-se. Os três estavam de pé. O homem fez sinal para que sentassem e primeiro eles miraram desconfiados as largas e cômodas poltronas. Isso Pedro Bala e João Grande, porque o Gato já estava se sentando muito a gosto, numa atitude displicente. A outro sinal do homem, Pedro e o Grande se sentaram, sendo que João Grande ficou sentado apenas na ponta da cadeira, como se temesse sujá-la. O homem tinha um ar de riso. De repente levantou-se e falou, mirando a Pedro, em quem reconhecera o chefe:
- O que vocês vão fazer é difícil e ao mesmo tempo é fácil. Agora o que tem é que é uma coisa que necessita que ninguém saiba.
- Não passa daqui - disse Pedro Bala.
O homem puxou o relógio do bolso: São uma e um quarto. Ele só volta às duas e meia... - olhava os Capitães da Areia ainda com indecisão.
- Então não é muito tempo - falou Pedro. - Se quer que a gente vá, é bom desembuchar logo...
O homem se decidiu:
- Duas ruas adiante desta. É a penúltima chácara à direita. Tem que evitar um cachorro que já deve estar solto. E bravo.
João Grande interrompeu:
- O senhor tem ai um pedaço de carne?
- Pra quê?
- Pro cachorro. Um pedaço chega.
Verei já. - Olhava os meninos. Parecia perguntar a si mesmo se devia confiar neles. - Vocês entram pelos fundos. Junto da cozinha, na parte de fora da casa, tem um quarto por cima da garagem. É o do empregado, que agora deve estar dentro de casa esperando o patrão. É no quarto dele que vocês vão entrar. Devem procurar um embrulho igual a este, igualzinho... Foi ao bolso da capa, trouxe um pequeno pacote amarrado com uma fita cor-de-rosa. - É igualzinho. Não sei se ainda estará no quarto.Também pode ser que o empregado o tenha no bolso. Se assim for, nada mais se pode fazer - e um desespero repentino pareceu tomá-lo. - Se eu tivesse podido ir esta tarde... Então, com certeza, ainda estaria no quarto.Mas agora quem sabe? - e cobriu o rosto com as mãos.
- Mesmo que esteja com o empregado se pode trazer... - disse Pedro.
- Não. É essencial que ninguém saiba que houve furto deste embrulho. O que vocês vão fazer é trocar os embrulhos, se o outro estiver no quarto.
- E se estiver com o empregado?
- Então... - e a fisionomia do homem novamente se alterou. João Grande pensou ouvir um nome que soava como Elisa. Mas talvez fosse ilusão de João Grande, que por vezes ouvia e via coisas que ninguém percebia. O negro era muito mentiroso.
- Então a gente troca os embrulhos do mesmo jeito. Pode ficar descansado. O senhor não conhece os Capitães da Areia.
Apesar do seu desespero, o homem sorriu da bravata de Pedro Bala:
- Então podem ir. Depois, tem que ser antes de duas horas, voltem aqui. Mas só quando a rua estiver deserta. Eu os esperarei. Acertaremos nossas contas então.Mas quero dizer outra coisa lealmente. Se vocês forem percebidos e presos, não me envolvam no caso Nada farei por vocês, porque meu nome não pode aparecer nisso tudo. Tratem de dar fim a este embrulho e não me chamem para nada. É ganhar ou perder...
- Neste caso - replicou Pedro Bala - é preciso marcar o preço. Quanto o senhor paga à gente?
- Dou 100$. Trinta para cada e mais 10$ para você - apontou para Pedro.
O Gato se mexeu na cadeira. Pedro fez sinal para que ele se calasse.
- O senhor dá cinquenta a cada e parece que ainda vai fazer negócio. São 150 bicos pros três. Senão, não tem embrulho.
O homem não vacilou muito. Olhava o relógio, onde os ponteiros corriam:
- Está bem.
Aí o Gato falou:
- Não é que a gente desconfie do senhor. Mas a coisa pode sair pelo avesso e o senhor mesmo disse que não se importaria com o que acontecesse à gente.
- E daí?
- É justo que o senhor nos passe logo algum.
João Grande apoiava o Gato com um gesto de cabeça. Pedro Bala repetiu as últimas palavras do outro:
- É justo, - repetiu também o homem. Tirou uma carteira do ou uma nota de cem mil-réis. Entregou a Pedro:
- Agora toca a andar. Se faz tarde.
Saíram. Pedro Bala disse:
- Pode ficar descansado. Daqui a uma hora a gente volta com o embrulho.
Em frente da casa a rua estava completamente deserta, numa janela da casa havia luz e eles viam a sombra de uma mulher que andava de um lado para outro o Grande bateu na testa:
- Me esqueci da carne pro cachorro.
Pedro Bala estava olhando a janela com luz, se voltou: Não tem nada. Isso me cheira a coisa de amigamento. O sujeito aquele derrubava a zinha daqui e agora o empregado tem as cartas que os dois se escrevia e quer dar o alarme. Esse pacote tá com perfume. É que o outro há de ter.
Fez sinal para os dois esperarem do outro lado da rua, chegou para perto do portão da casa. Logo que se encostou, um grande cão se aproximou latindo. Pedro Bala amarrou um cordel no ferrolho do portão, enquanto o cão andava de um lado para outro, latindo baixo. Depois chamou os outros dois:
- Tu - apontou pro Gato - fica aqui na rua pra dar o alarma se vem alguém. Tu, Grande, entra comigo.
Treparam na gradezinha do muro. Pedro Bala puxou com o cordão o ferrolho e o portão abriu. O Gato tinha ido para a esquina O cão ao ver o portão aberto se precipitou para a rua, ficou remexendo uma lata de lixo. Pedro Bala e João Grande pularam o muro, cerraram o portão para que o cachorro não pudesse entrar, se adiantaram entre as árvores. Na janela iluminada da casa o vulto de mulher continuava a andar. João Grande disse baixinho: