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- Tenho pena dela.

- Quem manda deitar com outros... Perto da casa o negro ficou para transmitir o aviso do Gato se viesse alguém. Tinham assovios especiais para estes casos. Pedro Bala rodeou a casa, chegou à cozinha.A porta estava aberta, como também a do quarto sobre a garagem. Porém, antes de subir a escada que dava para o quarto, Pedro espiou pela porta da cozinha. Na copa havia luz e um homem jogava paciência. "Deve ser o tal empregado", pensou Pedro e rápido se afastou para a escada da garagem. Subiu de quatro, entrou no quarto do homem.Não havia luz. Pedro fechou a porta, acendeu um fósforo. Havia apenas uma cama, um baú e um cabide na parede. O fósforo se apagou, mas Pedro já estava em cima da cama, que co toda com as mãos. Depois viu embaixo do colchão. Tampouco nada. Desceu então da cama, se aproximou, sem fazer ruído, do baú. Suspendeu a tampa, acendeu um fósforo que prendeu nos dentes. Remexeu a roupa com cuidado, não havia nada. Cuspiu o fósforo depois se lembrou que o homem podia não fumar e então o recolheu ao bolso e foi até o cabide. Nada nos bolsos da roupa ali dependurada Pedro Bala acendeu outro fósforo, mirou todo o quarto: - Com certeza está com o homem. Agora é que vão ser elas.

Abriu a porta do quarto, desceu as escadas. Chegou na porta da cozinha, o homem ainda estava sentado. Então Pedro Bala reparou que ele estava sentado em cima do embrulho. Aparecia uma ponta sob a perna do homem. Pedro pensou que tudo estava perdido. Como iria ele tirar o embrulho de baixo da perna do homem? Saiu da porta da cozinha, foi andando para onde estava o Grande. Só se ele e o Grande atacassem o homem. Mas aí haveria gritaria, todo mundo saberia do roubo. E o senhor que os tinha empregado não queria saber disso. De repente teve uma ideia. Chegou perto de onde tinha deixado o Grande, assoviou baixinho. João Grande apareceu logo. Pedro falou em voz muito baixa:

- Olha, Grande, o tal empregado tá sentado em riba do embrulho. Tu vai chegar na porta da rua, apertar a campainha e sumir depois. É pro homem se levantar e eu abafar o embrulho. Mas dá o suíte logo pro homem não te ver, pensar que foi sonho. Deixa passar o tempo de eu chegar na cozinha.

Voltou rápido para a porta da cozinha. Dai a um minuto a campainha soou. O empregado levantou-se às pressas, abotoou o paletó e se dirigiu para a frente da casa pelo corredor, onde acendeu uma luz. Pedro Bala penetrou na copa, trocou os pacotes e abriu para os lados da chácara. Saltou o muro, assoviou para o Gato e João Grande. O Gato veio logo. Mas João Grande não apareceu. Andaram de um lado para outro e o negro não chegava. Pedro começava a ficar impaciente pensando que o empregado podia ter surpreendido João Grande e agora estar atracado com ele. Mas quando ele passara por aqueles lados não havia escutado nenhum ruído... Disse:

- Se ele demorar, a gente entra.

Assoviaram novamente, não tiveram resposta. Pedro Bala resolveu:

- Vamos entrar de novo...

Mas ouviram o assovio de João Grande, que não tardou a estar ao lado deles. Pedro perguntou:

- Onde tu te meteu?

O Gato tinha pegado o cachorro pela coleira e o punha para dentro do portão. Tiraram o cordel do ferrolho e desapareceram pelo outro lado da rua. Aí o Grande aplicou:

- Na hora que meti o dedão na campainha entonce a dama lá em cima ficou muito assustada. Pegou, abriu a janela, parecia que ia se atirar mesmo.Espiava que fazia medo. Tava mesmo chorando. Entonces eu tava com pena e trepei pela bica pra dizer a ela que não chorasse mais, que não tinha mais de quê. Que agente tinha abafado os papéis. E como tive que aplicar tudo a ela, tive que demorar...

O Gato perguntou muito curioso:

- Era boa, era?

- Era boa, sim. Passou a mão na minha cabeça, depois me disse que muito obrigado, que Deus ia me ajudar.

- Deixa de ser burro, negro. Eu tava perguntando se era boa mas pra cama. Se tu viu o coxame...

O negro não respondeu. Um automóvel entrava pela rua. Pedro Bala bateu no ombro do negro e João Grande sabia que o chefe estava aprovando o que ele fizera. Então seu rosto se abriu de satisfação e murmurou:

- Eu só queria ver acara do galego quando o patrão abrir o pacote não encontrar o que esperavam.

E, já em outra rua, os três soltaram a larga, livre e ruidosa. gargalhada dos Capitães da Areia, que era como um hino do povo da Bahia.

Capítulo 4 - As Luzes do Carrossel

O Grande Japonês não era senão um pequeno carrossel nacional, que vinha de uma triste peregrinação pelas paradas cidades do interior naqueles meses de inverno, quando as chuvas são longas e o Natal está muito distante ainda. De tão desbotada que estava a tinta, tinta que antigamente fora azul e vermelha e agora o azul era um branco sujo e o vermelho um quase cor-de-rosa, e de tantos pedaços que faltavam em certos cavalos e em certos bancos, Nhozinho França resolveu não armá-lo numa das praças centrais da cidade e sim em Itapagipe. Ali as famílias não são tão ricas, há muitas ruas só de operários e as crianças pobres saberiam gostar do velho carrossel desbotado. O pano tinha muitos buracos também, além de um rasgão enorme que fazia o carrossel depender da chuva. Já fora belo, fora mesmo o orgulho da meninada de Maceió noutros tempos. Ficava então ao lado de uma roda-gigante e de uma sombrinha, sempre na mesma praça, e nos domingos e feriados as crianças ricas, vestidas de marinheiro ou de pequeno lorde inglês, as meninas de holandesa ou de finos vestidos de seda, vinham se aboletar nos cavalos preferidos, indo os menores nos bancos com as aias. Os pais iam para a roda-gigante, outros preferiam a sombrinha onde podiam empurrar as mulheres, tocando muitas vezes nas coxas e nas nádegas.O parque de Nhozinho França era naquele tempo a alegria da cidade. E, mais que tudo, o carrossel dava dinheiro, rodando incansavelmente com as suas luzes de todas as cores. Nhozinho achava a vida boa, as mulheres belas, os homens amáveis para com ele, mas achava que a bebida era boa também, fazia os homens mais amáveis e as mulheres mais belas. E bebeu assim primeiro a sombrinha, depois a roda-gigante. Depois, como não queria se separar do carrossel, ao qual tinha um pegadio especial, o desarmou uma noite com o auxílio de amigos e começou a peregrinar nas cidades de Alagoas e Sergipe. Enquanto isto, os credores o xingavam de quanto nome feio conheciam.Andou muito Nhozinho França com o seu carrossel. Depois de percorrer todas as cidadezinhas dos dois estados, de se embriagar em todos os seus bares, penetrou no estado da Bahia e até para o bando de Lampião e lê deu uma função. Estava numa pobre vila do sertão e não lhe faltava o dinheiro apenas para o transporte do seu carrossel. Faltava para o miserável hotel onde se hospedara e que era o único da vila, e também o trago de pinga, para a cerveja, que não era gelada ali, assim mesmo ele gostava. O carrossel armado no capim da praça da Matriz estava parado fazia uma semana. Nhozinho França esperava a noite de sábado e a tarde de domingo para ver se fazia algum cobre para arribar para um lugar melhor. Mas na sexta-feira Lampião entrou na vila com vinte e dois homens e então o carrossel teve muito que trabalhar. Como as crianças, os grandes cangaceiros, homens que tinham vinte e trinta mortes, acharam belo o carrossel, acharam que mirar suas luzes rodando, ouvir a música velhíssima da sua pianola e montar naqueles estropiados cavalos de pau era a maior felicidade. E o carrossel de Nhozinho França salvou a pequena vila de ser saqueada, as moças de serem defloradas, os homens de serem mortos. Só mesmo os dois soldados da polícia baiana que lustravam as botas na frente do posto policial foram fuzilados pelos cangaceiros, assim mesmo antes que eles vissem o carrossel armado na praça da Matriz. Porque talvez ai aos soldados da polícia baiana Lampião perdoasse nessa noite de suprema felicidade para o bando de cangaceiros. Então eles foram como crianças, gozaram daquela felicidade que nunca haviam gozado na sua meninice de filhos de camponeses: montar e rodar num cavalo de madeira de um carrossel, onde havia música de uma pianola e onde as luzes eram de todas as cores: azuis, verdes, amarelas, roxas vermelhas como o sangue que sai do corpo dos assassinados.