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Desemboca gente de todas asmas. E noite de sábado, amanhã os homens não irão para o trabalho. Podem demorar na rua essa noite. Muitos preferiram ir para os bares, a Porta do Mar está cheia, mas co que tinham filhos vieram com eles para a praça, que é mal iluminada. Em compensação aí estão as luzes do carrossel que rodam. As crianças olham para elas e batem palmas. Em frente à bilheteria Volta Seca imita vozes de animais e chama o público. Leva uma cartucheira como se estivesse no sertão. Nhozinho França achou que isto chamaria a atenção do povo e Volta Seca parece mesmo um cangaceiro com o chapéu de couro e a cartucheira atravessada. E imita animais até que se reúnam homens, mulheres e crianças na sua frente. Então oferece entradas, que as crianças compram. Vai uma alegria por toda a praça. As luzes do carrossel alegram a todos. No centro, agachado, o Sem-Pernas ajuda Nhozinho França a botar o motor para trabalhar. E carrossel gira, carregado de meninos, a pianola toca suas velhas valsas, Volta Seca vende entradas.

Na praça, casais de namorados passeiam. Mães de família compram picolés e sorvetes, um poeta sentado perto do mar faz um poema sobre as luzes do carrossel e a alegria das crianças. O carrossel ilumina toda a praça e todos os corações. A cada momento desemboca das ruas e dos becos. Volta Seca imita os animais, vestido de cangaceiro. Quando o carrossel para de girar, os meninos o invadem, exibindo o bilhete de ingresso, e é difícil conte-los. Quando um encontra mais lugar, fica comum rosto magoado de desilusão e impaciente a sua vez. E quando o carrossel para, os que vão nele querem saltar, é preciso que o Sem-Pernas venha e diga:

- Pula fora! Pula fora! Ou então compra outra entrada.

Só assim deixam os velhos cavalos, que nunca se cansam da corrida. Outros cavalgam os ginetes e a corrida recomeça, as girando, todas as cores fazendo uma cor única e estranha, a pi tocando sua antiga música. Também vão casais de namorados bancos e enquanto gira o carrossel murmuram palavras de amor. Há mesmo quem troque um beijo na corrida, quando o motor falha e as luzes se apagam. Então Nhozinho França e o Sem-Pernas se debruçam sobre o motor e examinam o defeito até a corrida recomeçar, abafando os protestos dos meninos. O Sem-Pernas já aprendeu todos os mistérios do motor.

Certa hora Nhozinho França manda que o Sem-Pernas vá substituir Volta Seca na venda de bilhetes. E manda que Volta Seca vá andar no carrossel. E o menino toma o cavalo que serviu a Lampião. E enquanto dura a corrida, vai pulando como se cavalgasse um verdadeiro cavalo. E faz movimentos com o dedo, como se atirasse nos que vão na sua frente, e na sua imaginação os vê cair banhados em sangue, sob os tiros da sua repetição. E o cavalo corre e cada vez com mais, e ele mata a todos, porque são todos soldados ou fazendeiros ricos. Depois possui nos bancos a todas as mulheres, saqueia vilas, cidades, tens de ferro, montado no seu cavalo, armado com seu rifle.

Depois vai o Sem-Pernas. Vai calado, uma estranha comoção o possui. Vai como um crente para uma missa, um amante para o seio da mulher amada, um suicida para a morte. Vai pálido e coxeia. Monta um cavalo azul que tem estrelas pintadas no lombo de madeira. Os lábios estão apertados, seus ouvidos não ouvem a música da pianola só vê as luzes que giram com ele e prende em si a certeza de que está num carrossel, girando num cavalo como todos aqueles meninos que têm pai e mãe, e uma casa e quem os beije e quem os ame. Pensa que é um deles e fecha os olhos para guardar melhor esta certeza. Já Se vê os soldados que o surraram, o homem de colete queria. Volta Seca os matou na sua corrida. O Sem-Pernas vai teso no seu cavalo. É como se corresse sobre o mar para as estrelas, na mais maravilhosa viagem do mundo.Uma viagem como o Professor nunca leu nem inventou. Seu coração bate tanto, tanto, que ele o aperta com a mão.

Nesta noite os Capitães da Areia não vieram. Não só a função carrossel na praça terminou muito tarde às duas horas da manhã os homens ainda rodavam, como muitos deles, inclusive Pedro Bala Boa-Vida, Barandão e o Professor, estavam ocupados em viria assuntos. Marcaram para o dia seguinte, das três para as quatro da manhã. Pedro Bala perguntou ao Sem-Pernas se ele já sabia manobrar bem com o motor: Não paga a pena dar um prejuízo ao teu patrão - explicou.

- Já sei aquilo tudo de cor e decorado. É o tipo da coisa canja.

O Professor, que jogava damas com João Grande, perguntou:

- Não era bom agente de tarde dá um pulo na praça? Quem sabe se não vale a pena?

- Eu vou - falou Pedro Bala. - Mas acho que não pode ir muitos. A turma pode desconfiar de ver tanto junto.

O Gato disse que de tarde não ia. Tinha o que fazer, já que à noite ia estar ocupado no carrossel. O Sem-Pernas mangou:

- Tu não pode passar um dia sem bater coxas com essa bruaca, não é? Tu vai acabar tatu...

O Gato não respondeu. João Grande também não iria à tarde. Tinha que ir encontrar como Querido-de-Deus para irem comer uma feijoada na casa de Don'Aninha, a mãe de santo.Finalmente ficou resolvido que fosse um grupo pequeno operar à tarde na praça. Os outros iriam para onde bem quisessem. Só à noite se reuniriam para irem todos correr no carrossel.

- É preciso levar gasolina, gente, pro motor.

O Professor tinha vencido João Grande já em três partidas fez uma coleta para comprarem dois litros de gasolina:

- Eu levo.

Mas na tarde do domingo chegou o padre José Pedro, que era uma das raríssimas pessoas que sabiam onde ficava a pousada mais permanente dos Capitães da Areia. O padre José Pedro se fizera amigo deles há bastante tempo. A amizade veio por intermédio do Boa-Vida. Este, um dia, penetrara, após uma missa, na sacristia de uma igreja onde oficiava padre José Pedro. Penetrara mais por curiosidade que por outra qualquer coisa. Boa-Vida não era dos que mais faziam pela vida. Gostava de deixara vida correr, sem se preocupar muito. Era mais um parasita do grupo. Um dia, quando lhe dava ganas, entrava numa casa de onde trazia um objeto de valor ou batia o relógio de um homem. Quase nunca o punha ele mesmo na mão dos intermediários. Trazia e entregava a Pedro Bala, assim como uma contribuição que dava ao grupo. Tinha muitos amigos entre os estivadores do cais, em várias casas pobres da Cidade de Palha, em muitos pontos da Bahia Comia em casa de um, em casa de outro.Em geral não aborrecia a nenhum. Se contentava com as mulheres que sobravam do Gato e mais que nenhum conhecia a cidade, suas ruas, seus lugares curiosos, uma festa onde podiam ir beber e dançar. Quando já tinha algum tempo que havia contribuído com algum objeto de valor para a economia do grupo, fazia um esforço, arranjava algo que rendesse dinheiro e entregava a Pedro Bala. Mas realmente não gostava de nenhuma espécie de trabalho, fosse honesto ou desonesto. Gostava era de deitar na areia do cais, horas e horas espiando os navios, de ficar de cócoras tardes inteiras nos portões dos armazéns do porto ouvindo histórias de valentias. Vestia-sede farrapos, pois só providenciava arranjar uma roupa quando seu traje caía aos pedaços. Gostava de andar ao léu nas ruas da cidade, entrando nos jardins para fumar um cigarro sentado num banco, entrando nas igrejas para espiar a beleza do ouro velho, flanando pelas ruas calçadas de grandes pedras negras.

Naquela manhã, quando viu o povo saindo da missa, entrou a igreja displicentemente e foi furando até a sacristia. Espiava tudo, os altares, os santos, riu de um São Benedito muito preto. Na sacristia não tinha ninguém e ele viu um objeto de ouro que devia dar muito dinheiro. Espiou mais uma vez, não viu ninguém. Foi passando a mão mas alguém tocou no seu ombro. O padre José Pedro acabara de entrar: