- Por que faz isso, meu filho? - perguntou com um sorris enquanto tirava da mão do Boa-Vida o relicário de ouro.
- Tava só dando uma espiada, reverendo. É batuta - responde Boa-Vida com certo receio. - E batuta mesmo. Mas não vá pensando que ia levar. Ia deixar aí direitinho.Sou de boa família.
O padre José Pedro espiou as roupas do Boa-Vida e riu. Boa-Vida olhou também para seus trapos:
- É que meu pai morreu, sabe? Mas até num colégio estive... Tou falando a verdade. Pra que é que eu ia roubar essa coisa? apontava o relicário. - Demais numa igreja. Não sou pagão.
O padre José Pedro sorriu de novo. Sabia perfeitamente que Boa-Vida estava mentindo. Há muito que ele aguardava uma oportunidade para travar relações comas crianças abandonadas da cidade. Pensava que aquela era a missão que lhe estava reservada. Já fizera umas tantas visitas ao reformatório de menores, mas ali lhe punham todas as dificuldades porque ele não esposava as ideias do diretor de que é necessário surrar uma criança para a emendar de um erro. E mesmo o diretor tinha ideias únicas sobre os erros. Há bastante tempo que o padre José Pedro ouvia falar nos Capitães da Areia e sonhava entrar em contato com eles, poder trazer todos aqueles corações a Deus. Tinha uma vontade enorme de trabalhar com aquelas crianças, de ajudá-las a serem boas. Por isso tratou o melhor que pôde a Boa-Vida. Quem sabe se por intermédio dele não chegaria, aos Capitães da Areia? E assim foi.
O padre José Pedro não era considerado uma grande inteligência entre o clero. Era mesmo um dos mais humildes entre aquela legião de padre s da Bahia. Em verdade fora cinco anos operário numa fábrica de tecidos, antes de entrar para o seminário. O diretor da fábrica, num dia em que o bispo a visitara, resolveu dar mostra de generosidade e disse que já que o senhor bispo se queixava da falta de vocação sacerdotal, ele estava disposto a custear os estudos de um seminarista ou de alguém que quisesse estudar para padre. José Pedro, que estava no seu tear, ouvindo, se aproximou e disse que ele queria ser padre. Tanto o patrão como o bispo tiveram uma surpresa. José Pedro já não era moço e não tinha estudo algum. Mas o patrão, diante do bispo, não quis voltar atrás. E José Pedro foi para o seminário. Os demais seminaristas riam dele. Nunca conseguiu ser um bom aluno. Bem comportado, isso era. Também dos mais devotos, daqueles que mais se acercavam da igreja. Não estava de acordo com muitas das coisas que aconteciam no seminário e por isso os meninos o perseguiam. Não conseguia penetrar os mistérios da filosofia, da teologia e do latim. Mas era piedoso e tinha desejos de catequizar crianças ou índios. Sofreu muito, principalmente depois que, passados dois anos, o dono da fábrica deixou de pagar seus gastos e ele teve que trabalhar de bedel no seminário para poder continuar. Mas conseguiu se ordenar e ficou adido a uma igreja da capital, esperando uma paróquia. Porém seu grande desejo era catequizar as crianças abandonadas da cidade, os meninos que, sem pai e sem mãe, viviam do roubo, em meio a todos os vícios.O padre José Pedro queria levar aqueles corações todos a Deus. Assim começou a frequentar o reformatório de menores, onde a princípio o diretora recebia com muita cortesia. Mas quando ele declarou contra os castigos corporais, contra deixar as crianças co fome dias seguidos, então as coisas mudaram. Um dia teve escrever uma carta sobre o assunto para a redação de um jornal. Então sua entrada foi proibida no reformatório e até uma queixa contra foi dirigida ao arcebispado. Por isso não teve uma freguesia Porém seu maior desejo era conhecer os Capitães da Areia, problema dos menores abandonados e delinquentes, que quase preocupava a ninguém em toda a cidade, era a maior preocupação padre José Pedro. Ele queria se aproximar daquelas crianças não para trazê-las para Deus, como para ver se havia algum meio melhorar sua situação. Pouca influência tinha o padre José Pedro. Não tinha mesmo influência nenhuma, nem tampouco sabia como agir para ganhar a confiança daqueles pequenos ladrões. Mas s que a vida deles era falta de todo o conforto, de todo carinho, uma vida de fome e de abandono. E se o padre José Pedro não cama, comida e roupa para levar até eles, tinha pelo menos pala de carinho e, sem dúvida, muito amor no seu coração. Numa se enganou, a princípio, o padre José Pedro: em lhes oferecer, trocado abandono da liberdade que gozavam, soltos na rua, possibilidade de vida mais confortável. O padre José Pedro sabia que não podia acenar com o reformatório àquelas crianças. Ele conhecia demais as leis do reformatório, as escritas e as que cumpriam. E sabia que não havia possibilidade de nele uma criança tomar boa e trabalhadora.Mas o padre José Pedro confiava em amigas que possuía, beatas velhas e religiosas. Elas podiam se encarregar de vários dos Capitães da Areia, de educá-los e alimentá-los.Mas isso seria o abandono de tudo de grande que tinha a vida a aventura da liberdade nas ruas da mais misteriosa e bela das cidades do mundo, nas ruas da Bahia de Todos os Santos. E logo que, intermédio de Boa-Vida, o padre José Pedro fez relações com Capitães da Areia, viu que se lhes fizesse essa proposta perderia a confiança que já depositavam nele e que se mudariam do trapiche ele nunca mais os veria. Além do mais não tinha absoluta co naquelas solteironas velhuscas que viviam metidas na igreja e aproveitavam os intervalos das missas para comentarem a vida Lembrava-se que, a princípio, elas tinham ficado magoadas com ele porque, ao acabar de celebrar pela primeira vez naquela igreja, um grupo de beatas se acercou dele com o evidente propósito de o ajudar a mudar os trajes do oficio da missa. E ressoaram em torno a ele exclamações comovidas: - Reverendozinho... Anjo Gabriel...
Uma velhusca magra juntava as mãos em adoração:
- Meu Jesuscristozinho...
Pareciam adorá-lo e o padre José Pedro se revoltou. Em verdade ele sabia que a grande maioria dos padre s não se revoltava e ganhava tons presentes de galinhas, perus, lenços bordados e por vezes até antigos relógios de ouro que passavam através de gerações na mesma família. Mas o padre José Pedro tinha outra ideia da sua missão, pensava que os outros estavam errados e foi com um furor sagrado que disse:
- As senhoras não têm o que fazer? Não têm casa de que cuidar? Eu não sou Jesuscristozinho, nem Anjo Gabriel... Vão para suas casas trabalhar, preparar o almoço, coser.
As beatas o olhavam assombradas. Era como se ele fosse o próprio Anticristo. O padre completou:
- Em suas casas trabalhando servem melhor a Deus que aqui cheirando as fraldas dos padre s... Vão, vão...
E enquanto elas saíam atemorizadas, ele repetia mais com magoa que com raiva:
- Jesuscristozinho... O nome de Deus em vão.
As beatas foram diretas ao padre Clóvis, que era gordo, calvo e muito bem-humorado, confessor preferido de todas elas. Narraram-lhe entre exclamações de assombro o que acabara de se passar. O padre Clóvis mirou as beatas com um olhar terno e as consolou:
- Logo passará... Isto é começo. Depois ele verá que vocês são mis santas, umas verdadeiras filhas do Senhor. Isso passará. Não fiquem tristes. Vão rezar um padre-nosso e não se esqueçam que há benção hoje.
Ficou rindo quando elas partiram. E murmurava de si para si:
- Esses padre s recém-ordenados estragam a vida da gente...
Depois as beatas foram aos poucos se aproximando novamente do padre José Pedro. A verdade é que nunca chegaram a ter com uma perfeita intimidade. O seu ar sério, a sua bondade que se reservava para quando se fazia necessária, e seu horror às intriguinhas sacristia faziam com que elas o respeitassem mais que o amassem. Algumas, no entanto, aquelas que em geral eram ou viúvas ou esposas de maus maridos, se fizeram mais ou menos suas amigas. Outra cais o afastava das beatas: ele era a negação do pregador. Nunca havia conseguido descrever o inferno com a força de convicção do padre Clóvis, por exemplo. Sua retórica era pobre e falha. No entanto, ele acreditava, ele era um crente. E dificilmente se poderia dizer que padre Clóvis acreditasse pelo menos no inferno.