- Está muito parecido...
Ele recolhia os níqueis e então ficava a retocar o desenho feito a giz, a ampliá-lo, a colocar homens decais e mulheres da vida, até um guarda o expulsava da calçada.Por vezes já tinha um grupo espiando e havia quem dissesse:
- Este menino promete. É pena que o governo não olhe e vocações... - e lembravam casos de meninos da rua que, ajudados famílias, foram grandes poetas, cantores e pintores.
O Professor acabou o desenho no qual pôs o carrossel e Nhozinho França caindo de bêbado e deu ao padre. Estavam todos num cerrado espiando o desenho, que o padre elogiava, quando ouviram:
- Mas é o padre José Pedro...
E o lorgnon da velha magra se assestou contra o grupo como arma de guerra. O padre José Pedro ficou meio sem jeito, os me olhavam com curiosidade os ossos do pescoço e do peito da velha onde um barret custosíssimo brilhava à luz do sol. Houve um m to em que todos ficaram calados, até que o padre José Pedro ânimo e disse:
- Boa tarde, dona Margarida.
Mas a viúva Margarida Santos assestou novamente o lorgnon de ouro.
- O senhor não se envergonha de estar nesse meio, padre? Um sacerdote do Senhor? Um homem de responsabilidade no meio desta gentalha...
- São crianças, senhora.
A velha olhou superiora e fez um gesto de desprezo com a boca. O padre continuou:
- Cristo disse: Deixai vir a mim as criancinhas...
- Criancinhas... Criancinhas... - cuspiu a velha.
- Ai de quem faça mala uma criança, falou o Senhor - e o padre José Pedro elevou a voz acima do desprezo da velha.
- Isso não são crianças, são ladrões. Velhacos, ladrões. Isso não do são crianças. São capazes até de ser dos Capitães da Areia... Ladrões - repetiu com nojo.
Os meninos a fitavam com curiosidade. Só o Sem-Pernas, que tinha vindo do carrossel pois Nhozinho França já voltara, a olhava com raiva. Pedro Bala se adiantou um passo, quis explicar:
- O padre só quer aju...
Mas a velha deu um repelão e se afastou.
- Não se aproxime de mim, não se aproxime de mim, imundície.
Se não fosse pelo padre eu chamava o guarda.
Pedro Bala aí riu escandalosamente, pensando que se não fosse pelo padre a velha já não teria o barret nem tampouco o lorgnon. A velha se afastou com um ar de grande superioridade, não sem dizer es para o padre José Pedro:
- Assim o senhor não vai longe, padre. Tenha mais cuidado com suas relações.
Pedro Bala ria cada vez mais, e o padre também riu, se bem sentisse triste pela velha, pela incompreensão da velha. Mas o carrossel girava com as crianças bem vestidas e aos poucos os olhos dos Capitães da Areia se voltaram para ele e estavam cheios de desejo de ar nos cavalos, de girar com as luzes. Eram crianças, sim- pensou padre.
No começo da noite caiu uma carga d'água. Também as nuvens logo depois desapareceram do céu e as estrelas brilharam, ou também a lua cheia. Pela madrugada os Capitães da Areia vieram. O Sem-Pernas botou o motor para trabalhar. E eles esqueceram não eram iguais às demais crianças, esqueceram que não tinham, nem pai, nem mãe, que viviam de furto como homens, que temidos na cidade como ladrões. Esqueceram as palavras da velha de lorgnon. Esqueceram tudo e foram iguais a todas as crianças, cavalgando os ginetes do carrossel, girando com as luzes. As estrelas brilhavam, brilhava a lua cheia. Mas, mais que tudo, brilhavam noite da Bahia as luzes azuis, verdes, amarelas, roxas, vermelhas, do Grande Carrossel Japonês.
Capítulo 5 - Docas
Pedro Bala bateu a moeda de quatrocentos réis na parede da Alfândega, ela caiu adiante da de Boa-Vida. Depois Pirulito bate dele, a moeda ficou entre a de Boa-Vida e a de Pedro Bala. Boa-Vida estava acocorado, espiando. Tirou o cigarro da boca:
- Eu gosto é assim mesmo. De começar ruim...
E continuaram o jogo, mas Boa-Vida e Pirulito perderam moedas de quatrocentão, que Pedro Bala embolsou:
- Eu sou é bamba mesmo.
Diante deles estavam os saveiros ancorados. Do Mercado mulheres e homens. Eles esperavam nesta tarde o saveiro do Querido-de-Deus. O capoeirista estava numa pescaria, que sua profissão e pescador. Continuaram o jogo do cruzado até que Pedro Bala limpou os outros dois. A cicatriz do seu rosto brilhava. Gostava de vai assim num jogo limpo, principalmente quando os parceiros eram da força do Pirulito que fora muito tempo o campeão do grupo e de Boa-Vida. Quando terminaram, Boa-Vida puxou o bolso para fora:
- Tu vai me emprestar nem que seja um cruzado. Tou a nem-nem.
Depois mirou o mar, os saveiros ancorados:
- Querido-de-Deus vai chegar de tardinha. Vamos pias a Pirulito disse que ficava esperando o Querido-de-Deus, mas Pedro Bala foi com Boa-Vida para as docas. Atravessaram as ruas do cais, afundaram os pés na areia.Um navio desatracava do armazém 5, haviam movimento de gente que entrava e saía. Pedro Bala perguntou ao Boa-Vida:
- Tu não tem vontade de ser marítimo?
- Tá vendo... Gosto daqui. Não quero arribar, não.
- Pois eu tenho vontade. É bonito trepar num mastro. E um temporal, bem? Tu te lembra daquela história que o Professor leu pra gente? Aquela que tinha um temporal.Batuta...
- Era porreta, sim.
Pedro Bala ficou se lembrando da história. Boa-Vida achava besteira sair da Bahia, onde, quando crescesse, seria tão fácil viver uma boa existência de malandro, navalha na calça, violão debaixo do braço, uma morena para derrubar no areal. Era a existência que desejava ter quando se fizesse completamente homem.
Chegaram ao portão do armazém sete. João de Adão, um estivador negro e fortíssimo, antigo grevista, temido e amado em toda a estiva, estava sentado num caixão.Fumava cachimbo e os músculos saltavam sob sua camisa. Quando viu os meninos foi saudando:
- Olha o amigo Boa-Vida. E o Capitão Pedro.
Só chamava Pedro de Capitão Pedro e gostava de conversar com eles. Ofereceu um pedaço de caixão a Pedro Bala, Boa-Vida se acocorou na sua frente. Num canto, uma negra velha vendia laranjas cocadas, vestida com uma saia de chitão e uma anágua que deixava ver os seios ainda duros apesar da sua idade. Boa-Vida ficou espiando os peitos da negra, enquanto descascava uma laranja que apanhara no bueiro.
- Tu ainda tem uma peitam a bem boa, hein, tia?
A negra sorriu:
- Esses meninos de hoje não respeita os mais velho, compadre João de Adão. Onde já se viu um capetinha destes falar em peito pra a velha encongrujada como eu?
Deixa de conversa, tia. Tu ainda topa a coisa...
A negra riu com vontade:
- Já fechei a cancela, Boa-Vida. Passei da idade. Pergunta este... - aponta João de Adão. - Vi quando ele, quase menino as como tu, fez a primeira greve aqui nas doca. Naquele tempo ninguém sabia que diabo era greve. Tu te lembra, compadre?
João de Adão balançou a cabeça que sim, fechou os o recordando os longínquos tempos da primeira greve que chefiara docas. Era um dos doqueiros mais velhos, embora ninguém lhe d a idade que tinha.
Pedro Bala falou:
- Negro quando pinta, três vezes trinta.