A negra mostrou a carapinha toda pintada de branco. Tinha tirado o lenço que enrolava na cabeça e Boa-Vida chalaceou:
- Por isso tu anda com esse lenço. O negra cheia de proso João de Adão perguntou:
- Tu te lembra de Raimundo, comadre Luisa?
- O Loiro, que morreu na greve? Como não me lembro? Era que toda tarde vinha dar dois dedo de prosa comigo, gostava de pilhéria...
- Mataram ele bem aqui, naquele dia que a cavalaria ato a gente. - Olhou para Pedro Bala. - Tu nunca ouviu falar Capitão?
- Não.
- Tu tinha uns quatro anos. Depois disso tu andou um ano casa de um pra casa de outro até que tu fugiu. Depois a gente só saber de tu quando tu já era chefe dos Capitães da Areia. Mas a gente sabia que tu havia de te arranjar. Quantos anos tu tem agora?
Pedro ficou fazendo cálculos e o próprio João de Adão interrompeu.
- Tu tá com uns quinze anos. Não é, comadre?
A negra fez que sim. João de Adão continuou:
- No dia que tu quiser tu tem um lugar aqui nas docas. A gente tem um lugar guardado pra tu.
- Por quê? - perguntou Boa-Vida, já que Pedro apenas olhava espantado.
- Porque o pai dele era Raimundo e morreu foi aqui mesmo lutando pela gente, pelo direito da gente. Era um homem e tanto. Valia dez destes que a gente encontra por ai.
- Meu pai? -fez Pedro Bala, que daquelas histórias só conhecia vagas rumores.
- Teu pai, era. A gente chamava ele de Loiro. Quando foi da greve fazia discurso pra gente, nem parecia um estivador. Foi pegado por uma bala. Mas tem um lugar pra tu nas docas.
Pedro Bala riscava o asfalto com um graveto. Olhou João de Adão:
- Por que tu nunca me contou isso?
- Tu era pequeno para entender. Agora tu tá ficando um homem - e riu com satisfação.
Pedro Bala riu também. Estava contente de saber a história de seu pai, porque ele tinha sido um homem valente. Mas perguntou lentamente:
- E minha mãe tu conheceu?
João de Adão pensou um momento:
- Não sei, não. Quando conheci o Loiro, ele não tinha mulher.
Mas tu vivia com ele.
- Eu conheci - era a negra que estava falando. - Um pedaço mulher. Corria uma história que teu pai tinha fintado ela de casa, ela era de uma família rica lá de cima - e apontava a cidade alta. Morreu quando tu nem tinha seis meses. Nesse tempo Raimundo trabalhava na fábrica de ciganos de Itapagipe. Depois foi que veio pras docas.
João de Adão repetiu:
- Quando tu quiser...
Pedro Bala fez um aceno com a cabeça. Depois perguntou:
- Foi uma coisa batuta a greve, não foi?
E ficaram ouvindo João de Adão narrar a greve. Quando ele acabou, Pedro Bala disse:
- Eu gostava de fazer uma greve. Deve ser porreta.
Vinha entrando um navio. João de Adão se levantou:
- Agora a gente vai carregar aquele holandês.
O navio apitava nas manobras de atracação. De todos os cantos surgiam estivadores que se iam dirigindo para o grande armazém Pedro Bala os olhou com carinho. Seu pai fora um deles, morrera defesa deles. Ali iam passando homens brancos, mulatos, negros muitos negros. Iam encher os porões de um navio de sacos de cacau, fardos de fumo, açúcar, todos os produtos do estado que iam para pátrias longínquas, onde outros homens como aqueles, talvez altos loiros, descarregariam o navio, deixariam vazios os seus porões, pai fora um deles. Só agora o sabia. E por eles fizera discursos trepado em um caixão, brigara, recebem uma bala no dia em que a cavalaria enfrentou os grevistas. Talvez ali mesmo, onde ele se sentava, ti caldo o sangue de seu pai. Pedro Bala mirou o chão agora asfaltado. Por baixo daquele asfalto devia estar o sangue que correra do corpo seu pai. Por isso, no dia em que quisesse, teria um lugar nas d entre aqueles homens, o lugar que fora de seu pai. E teria também carregar fardos... Vida dura aquela, com fardos de sessenta quilos costas. Mas também poderia fazer uma greve assim como seu pai João de Adão, brigar com policias, morrer pelo direito deles, vingaria seu pai, ajudaria aqueles homens a lutar pelo seu vagamente Pedro Bala sabia o que era isso. Imaginava-se n greve, lutando.E sorriam os seus olhos como sorriam os seus Boa-Vida, que chupava a terceira laranja, interrompeu seu sonho: - Tá pensando na morte da bezerra, seu mano?
A preta velha olhou Pedro Bala com carinho:
- É a cara do pai, Só que tem o cabelo ondeado da mãe. Se fosse esse talho na cara, não tinha que tirar nem pôr pan Raimundo. Um homem bonito...
Boa-Vida riu entre dentes. Perguntou quanto devia, pagou duzentos réis. Depois olhou mais uma vez os peitos da ri perguntou:
- Tu não tem uma fia, minha tia?
- Pra que tu quer saber, desgraçado?
Boa-Vida riu:
- Eu podia me amigar com ela...
A negra atirou o chinelo, Boa-Vida desviou o corpo:
- Se eu tivesse uma filha, não era pra teu bico, malandro.
Depois se lembrou:
- Tu não vai hoje ao Gantois? Vai ser uma batida daquelas. Um fandango de primeira. É festa de Omolu.
- Muita boia? E aluá?
- Se tem... - mirou Pedro Bala. - Por que tu não vai, branco?
Omolu não é só santo de negro. É santo dos pobres todos.
Boa-Vida estendeu a mão numa saudação quando ela falou em Omolu, o deus da bexiga. A tarde caía. Um homem comprou cocada. As luzes se acenderam de repente. A negra se levantou, boa-vida ajudou a que ela botasse o tabuleiro na cabeça. Ao longe, Pirulito apontava com o Querido-de-Deus. Pedro Bala olhou mais uma vez os homens que nas docas carregavam fardos para o navio holandês. Nas largas costas negras e mestiças brilhavam gotas de suor. Os pescoços musculosos iam curvados sob os fardos.E os guindastes rodavam ruidosamente. Um dia iria fazer uma greve como seu pai... Lutar gelo direito... Um dia um homem assim como João de Adão poderia contar a outros meninos na porta das docas a sua história, como contavam a de seu pai. Seus olhos tinham um intenso brilho na noite recém-chegada.
Ajudaram o Querido-de-Deus a desembarcar a pescaria, que fora boa. Yemanjá o tinha ajudado. Um homem que tinha banca de peixe no mercado comprou toda a pescaria.Depois foram comer num restaurante próximo. Pirulito foi ver o padre José Pedro, que estava lhe ensinando a ler e a escrever. Passou pelo trapiche antes, para apanhar uma caixa de penas que tinha levantado numa papelaria pela manhã. Pedro Bala, Boa-Vida e o Querido-de-Deus andaram para o candomblé do Gantois o Querido era ogã, onde Omolu apareceu com suas vestimentas vermelhas e avisou a seus filhinhos pobres, no cântico mais lindo que pode haver, que em breve a miséria acabaria, que ele levaria a bexiga para a casa dos ricos e que os pobres seriam alimentados e felizes. Os atabaques tocavam na noite de Omolu. E ele anunciava que o dia de vingança dos pobres chegaria. As negras dançavam, os homens estavam alegres. O dia da vingança chegaria.
Pedro Bala veio sozinho pelas ruas da cidade, pois o Boa-Vida fora com o Querido-de-Deus dançar num bleforé. Desceu as ladeiras que o conduziam à cidade baixa. Ia devagar, como se carregasse um peso dentro de si, ia como que curvado por dentro. Pensava na conversa da tarde com João de Adão, conversa que o alegrara porque ficara sabendo que seu pai fora um homem valente do cais, um homem que chegara a deixar uma história. Mas João de Adão falara também dos direitos dos doqueiros. Pedro Bala nunca tinha ouvido falar naquilo e, no entanto, fora por estes direitos que seu pai morrera. E depois, na macumba do Gantois, Omolu, paramentado de vermelho, dissera que odiada vingança dos pobres não tardaria a chegar.E isso oprimia o coração de Pedro Bala, como aqueles fardos de sessenta quilos oprimem o cangote dos estivadores.
Quando acabou a descida da ladeira se dirigiu para o areal, vontade de ir para o trapiche ver se dormia. Um cachorro latiu à sua passagem, pensando que ele ia lhe disputar o osso que estava roendo. No fim da rua Pedro Bala viu um vulto. Parecia uma mulher andava apressada. Sacudiu seu corpo de menino como se sacode animal jovem ao ver a fêmea, e com passo rápido se aproximou mulher que agora entrava no areal. A areia chiava sob os pés e a mulher notou que era seguida. Pedro Bala podia vê-la bem quando ela passava sob os postes: era uma negrinha bem jovem, talvez tivesse apenas anos como ele. Mas os seios saltavam pontiagudos e as nádegas rolavam no vestido, porque os negros mesmo quando estão andando naturalmente é como se dançassem. E o desejo cresceu deu Pedro Bala, era um desejo que nascia da vontade de afogar a angústia que o oprimia. Pensando nas nádegas rebolantes da negrinha pensava na morte de seu pai defendendo o direito dos grevistas, Omolu pedindo vingança na noite de macumba. Pensava em derrubar a negrinha sobre a areia macia, em acariciar seus seios duros talvez seios de virgem, sempre seios de menina, em possuir seu corpo quente de negra.