Uma vez, e era no verão, um homem parara vestido com um grosso sobretudo para tomar um refresco numa das cantinas da cidade. Parecia um estrangeiro. Era pelo meio da tarde e o calor doía nas carnes. Mas o homem parecia não senti-lo, vestido com seu sobretudo novo. O Professor achou o homem engraçado e com cara de sujeito de dinheiro e começou a fazer um desenho dele com o sobretudo enorme, maior que o homem, era o próprio homem o sobretudo, a giz no passeio. E ria de satisfação, porque provavelmente o homem lhe daria uma prata de dois mil-réis. O homem voltou-se na sua cadeira e olhou o desenho quase concluído. O Professor ria, achava o desenho bom, o sobretudo dominando o homem, era mais que o homem. Mas o homem não gostou da coisa, se deixou possuir por uma grande raiva, levantou-se da cadeira e deu dois pontapés no Professor. Um atingiu o menino nos rins e ele rolou pela calçada gemendo. O homem ainda meteu o pé no seu rosto, dizendo congestionado ao se afastar: - Toma, corneta, para aprender a não fazer burla de um homem.
E saiu batendo moedas na mão, após meio apagar com o pé o desenho. A garçonete veio e ajudou o Professor a se levantar. Olhou com piedade o menino, que apalpava o lugar dos rins doloridos, olhou o desenho, disse:
- Que bruto! Até que o retrato estava parecido... Um estúpido!
Meteu a mão no bolso onde guardava as gorjetas, tirou uma prata de um mil-réis, quis dar ao Professor. Mas ele recusou com a mão, sabia que ia fazer falta a ela.Olhou o desenho semiapagado, seguiu seu caminho ainda com as mãos nos rins. Ia quase sem pensar, com um nó na garganta. Ele quisera agradar o homem, merecer uma prata dele. Tivera dois pontapés e palavras brutais. Não compreendia. Por que eram odiados assim na cidade? Eram pobres crianças sem pai, sem mãe. Por que aqueles homens bem vestidos tanto os odiavam? Foi com sua dor. Mas aconteceu que no caminho para o trapiche, no deserto do areal sob o sol, encontrou novamente, minutos depois, o homem de sobretudo. Parecia que ia para um dos navios atracados no porto e levava agora o sobretudo no braço porque o sol estava abrasador. Professor tirou a navalha poucas vezes a usava e se aproximou do homem. O calor tinha alijado do areal todos os homens e o do sobretudo cortava pela areia para fazer o caminho mais curto para o cais. O Professor foi silenciosamente por detrás do homem quando chegou perto tomou a frente com a navalha na mão. A vista do homem tinha transformado a confusão de seus sentimentos num único sentimento: vingança. O homem o olhou aterrorizado. 0 Professor crescia em sua frente com a navalha aberta. Murmurou entre dentes: - Sai, moleque.
O Professor avançou com a navalha, o homem ficou branco.
- Que é isso? Que é isso? - e mirava todos os lados na esperança de ver alguém. Mas só ao longe, nas docas, apareciam perfis de homens. Então o do sobretudo largou a correr quando o Professor saltou em cima dele e lhe cortou a mão com a navalha. O sobretudo ficou abandonado no chão e o sangue caía da mão do homem na areia. O Professor tomou pelo outro lado, ficou um instante sem saber que fazer. Não tardaria a vir um guarda, logo muitos, acompanhando o homem em sua perseguição. Se o navio do homem saísse logo, tudo estava bem, a perseguição pouco demoraria. Mas se tardasse a sair, com certeza o homem o perseguiria até dar com ele e pô-lo no xadrez. Então o Professor lembrou-seda garçonete. Caminhou para a cantina, do jardim que ficava em frente fez sinal para a garçonete. Ela veio e logo compreendeu quando o viu com o sobretudo. O Professor avisou:
- Ele tá com um talho na mão.
Ela riu:
- Tu te vingou, hein?
Levou o sobretudo para a cantina, guardou. O Professor sumiu até que o navio saiu barra afora. Mas de onde estava viu a batida dos guardas pelo areal e pelas ruas adjacentes. Foi assim que o Professor tinha conseguido aquele sobretudo, que nunca quis vender. Adquirira um sobretudo e muito ódio. E tempos depois, quando as suas pinturas murais admiraram todo o país eram motivos de vidas de crianças abandonadas, de velhos mendigos, de operários e doqueiros que rebentavam cadeias, notaram que nelas os gordos burgueses apareciam sempre vestidos com enormes sobretudos que tinham mais personalidade que eles próprios.
Pedro Bala, João Grande e o Sem-Pernas entraram no trapiche. Foram para o grupo que jogava em torno ao Gato. Quando eles chegaram, o jogo parou um momento, o Gato ficou espiando os três:
- Quer topar um sete-e-meio?
- Tou com cara de besta? respondeu o Sem-Pernas.
João Grande sentou para espiar, Pedro Bala se afastou com o Professor para um canto. Queria combinar uma maneira de roubar a imagem de Ogum da polícia. Discutiram parte da noite e já eram onze horas quando Pedro Bala, antes de sair, falou para todos os Capitães da Areia:
- Minha gente, eu vou fazer um troço difícil. Se eu não aparecer até de manhã, vocês fica sabendo que eu tou na polícia e não demoro a tá no reformatório, até fugir. Ou até vocês me tirar de lá...
E saiu. João Grande o acompanhou até a porta. O Professor veio para junto do Gato novamente. Os menores olhavam a partida do chefe com certo receio. Tinham uma grande confiança em Pedro Bala e sem ele muitos não saberiam como se arranjar.
Pirulito veio do seu canto, deixara uma oração pelo meio:
- O que foi?
- Pedro foi fazer um troço difícil. Se não voltar de manhã, é que tá na chave...
- A gente tira ele respondeu Pirulito naturalmente, e nem parecia que minutos antes estava ante um quadro da Virgem rezando pela salvação da sua pequena alma de ladrão. E voltou aos seus santos a rezar por Pedro Bala.
O jogo recomeçou. Chuva e raios, trovões e nuvens no céu. O frio intenso no trapiche. Gotas de água caíam sobre os meninos que jogavam. Mas o jogo agora era sem atenção, o próprio Gato se esquecia de ganhar, havia como que uma confusão em todo o trapiche. Durou até que Professor disse:
- Eu vou ver as coisas...
João Grande e o Gato foram com ele. Nesta noite foi Pirulito que se deitou na porta do trapiche com o punhal sob a cabeça. E perto dele Volta Seca espiava a noite com sua cara sombria. E pensava em que lugar estaria nesta noite de temporal o grupo de Lampião na imensidade das caatingas. Talvez que nessa noite de temporal lutassem com a polícia como ia fazer agora Pedro Bala. E Volta Seca pensou que quando Pedro Bala fosse grande como um homem seria tão corajoso como Lampião. Lampião era o dono do sertão, das caatingas sem fim. Pedro Bala seria dono da cidade, do casario, das ruas, do cais. E Volta Seca, que era do sertão, poderia andar nas caatingas e nas cidades.
Porque Lampião era seu padrinho e Pedro Bala seu amigo. Imitou o cocorocó de um galo e isso era sinal de que Volta Seca estava alegre.