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Parecia que ia chorar. A senhora olhava muito impressionada:

- Você é aleijado, meu filho?

O Sem-Pernas mostrou a perna capenga, andou na frente da senhora forçando o defeito. Ela o fitava com compaixão:

- De que morreu sua mãe?

- Mesmo não sei. Deu uma coisa esquisita na pobre, uma febre de mau agouro, ela bateu a caçoleta em cinco dias. E me deixou só no mundo... Se eu ainda agüentasse o repuxo do trabalho, ia me arranja. Mas com esse aleijão só mesmo numa casa de família... A senhora não tá precisando de um menino pra fazer compra, ajudar no trabalho da casa? Se tá, dona...

E como o Sem-Pernas pensasse que ela ainda estava indecisa completou com cinismo, uma voz de choro:

- Se eu quisesse me metia aí com esses meninos ladrão. Com os tal de Capitães da Areia. Mas eu não sou disso, quero é trabalhar.Só que não agüento um trabalho pesado. Sou um pobre órfão, tou com fome...

Mas a senhora não estava indecisa. Estava era se lembrando seu filho, que tinha morrido com a idade daquele e que ao morrer matara toda a sua alegria e a do marido.Este ainda tinha as suas coleções de obras de arte, mas ela tinha apenas a recordação daquele filho que a deixara tão cedo. Por isso olha o Sem-Pernas, esfarrapado, com um grande carinho e ao lhe falar sua voz tem uma doçura diferente da de sempre. Há como que um pouco de alegria na doçura da sua voz, e isso espanta a criada:

- Entre, meu filho. Deixe estar que vou arranjar um trabalho para você... - pôs a mão fina e aristocrática, onde brilhava solitário, na cabeça suja do Sem-Pernas e falou para a criada:

- Maria José, prepare o quarto de cima da garagem para este menino.

Mostre o banheiro a ele, dê um roupão de Raul, depois dê comida a ele...

- Antes de botar o almoço, dona Ester?

- Antes, sim. Faz dois dias que ele não come, pobrezinho...

O Sem-Pernas nada dizia, apenas secava com as costas da mão lagrimas fingidas.

- Não chore... - falou a senhora, e acariciou o rosto da criança.

- A senhora é tão boa. Deus lhe paga...

Depois perguntou como ele se chamava, e o Sem-Pernas deu o primeiro nome que lhe passou pela cabeça:

- Augusto... - e como repetia o nome para si mesmo, para não se esquecer que se chamava Augusto, não viu no primeiro momento a emoção da senhora, que murmurava:

- Augusto, o mesmo nome...

Disse em voz alta, porque agora o Sem-Pernas olhava seu rosto emocionado:

- Meu filho também se chamava Augusto... Morreu quando tinha assim o seu tamanho... Mas entre, meu filho, vá se lavar para comer.

Dona Ester o acompanhou comovida. Viu que a empregada mostrava o banheiro ao Sem-Pernas, dava-lhe um roupão e se dirigia pata o quarto em cima da garagem para arrumá-lo o chofer tinha se despedido, o quarto estava vazio. Dona Ester se aproximou, disse ao Sem-Pernas que parara na porta do banheiro:

- Pode jogar essas roupas fora. Maria José depois vai lhe trazer roupa...

O Sem-Pernas agora olhava a senhora que desaparecia, e tinha raiva, mas não sabia se era dela ou de si mesmo.

Dona Ester sentou-se em frente ao seu penteador, ficou com os olhos parados, quem a visse pensaria que ela olhava o céu através da janela. Porém, em verdade, ela nada olhava, nada via. Olhava, sim, para dentro de si, para as suas recordações de muitos anos, e via um menino da idade do Sem-Pernas, vestido com uma roupa de marinheiro, correndo no jardim da outra casa, da qual se mudaram depois que ele morreu. Era um menino cheio de vida e de alegria, gostava de rir e de saltar. Quando se cansava de correr com o gato, de montar na gangorra do jardim, de jogar a bola de borracha no quintal para o cão lobo a apanhar, vinha e passava os braços em torno ao colo de dona Ester, a beijava no rosto e ficava com ela, vendo livros de figuras, aprendendo a ler e a desenhar as letras. Para tê-lo junto a si o maior tempo possível dona Ester e o marido resolveram ensinar ao filho as primeiras letras mesmo em casa. Um dia e os olhos de dona Ester se enchem de lágrimas veio a febre. Depois o pequeno caixão saiu pela porta e ela o olhava de olhos espantados, não podia compreender seu filho houvesse morrido.O retrato dele ampliado num quadro no seu quarto, mas uma cortina o cobre sempre, porque ela não gosta de rever a face do filho para não renovar sua angústia. Também roupas que ele usou estão todas trancadas na sua pequena mala jamais buliram nela. Mas agora dona Ester tira as chaves da sua caixa de joias.

E, lentamente, muito lentamente, se dirige para onde está a mala. Puxa uma cadeira na qual senta. Abre com mãos trêmulas a maleta. Mira as calças e blusas, a roupa de marinheiro, os pequenos pijamas e camisolas com que ele dormia. Aperta a roupa de marinheiro ao peito como se abraçasse seu filho. As lágrimas rebentam.

Agora um menino pobre e órfão viera bater à sua porta. Depois da morte de seu filho ela não quisera ter outro, não gostava mesmo de ver e brincar com crianças para não avivar a dor das suas recordações. Mas um, pobre e órfão, aleijado e triste, que se dissera chamar Augusto como seu filho, batera em sua porta pedindo pão, pousada e carinho. Por isso ela tem coragem de abrir a mala onde guarda roupas que seu filho usou. Por isso tira esta roupa azul de marinheiro, a roupa da qual ele mais gostava. Porque para dona Ester seu filho voltou hoje na figura desta criança andrajosa e aleijada, sem pai, sem mãe. Seu filho voltou e suas lágrimas não são apenas de dor. Voltou seu filho macilento e esfomeado, com uma perna aleijada e vestido de farrapos. Mas em breve será novamente o Augusto alegre e feliz daqueles anos passados, e novamente virá e passará os braços em torno ao seu pescoço e lerá as grandes letras da cartilha.

Dona Ester se levanta. Leva consigo a roupa azul de marinheiro. E é vestido com ela que o Sem-Pernas come o melhor almoço da sua vida.

Se a roupa de marinheiro tivesse sido feita de propósito para ele não estaria tão bem. Estava perfeita no Sem-Pernas e quando ele se olhou no espelho da sala quase não se reconheceu. Estava lavado, a empregada tinha posto brilhantina no seu cabelo e perfume no seu rosto. A roupa de marinheiro era um a beleza. O Sem-Pernas se mirava no espelho. Passou a mão na cabeça, depois no peito alisando a roupa, sorriu pensando no Gato. Daria muito para que o Gato o visse tão elegante.Tinha também sapatos novos, mas a verdade é que os sapatos o desgostavam um pouco porque tinham um laço de fita, pareciam um pouco sapatos de mulher. O Sem-Pernas achava esquisito estar vestido de marinheiro com sapatos de mulher. Andou para o jardim, pois queria fumar, nunca tinha deixado de tragar o seu cigarro após o almoço. Por vezes não havia almoço, mas havia sempre uma ponta de cigarro ou de charuto. Ali era preciso cuidado, não podia fumar abertamente. Se o houvessem deixado na cozinha de mistura com a criadagem, como o deixavam nas outras casas onde penetrara para depois roubar, poderia fumar, conversar na língua de poucos termos dos Capitães da Areia. Mas desta vez o tinham lavado, vestido de novo, posto brilhantina no seu cabelo e perfume no rosto. Depois tinham lhe dado comida na sala de jantar. E durante o almoço a senhora conversara com ele como se ele fosse um menino bem criado. Agora mandara que ele brincasse no jardim, onde o gato amarelo que se chamava Berloque esquentava ao sol. O Sem-Pernas chega para um banco, tira do bolso o maço de cigarros baratos. Quando mudara a roupa não se esquecera dos cigarros. Acende um e começa a saborear as tragadas, pensando na sua nova vida. Muitas vezes já fizera aquilo: penetrar em casa de uma família como um menino pobre, órfão e aleijado e neste título passar os dias necessários para fazer um reconhecimento completo da casa, dos lugares onde guardávamos objetos de valor, das saídas fáceis para uma fuga. Depois os Capitães da Areia invadiam a casa numa noite, levavam os objetos valiosos, e no trapiche o Sem-Pernas gozava invadido por uma grande alegria, alegria da vingança. Porque naquelas casas, se o acolhiam, se lhe davam comida e dormida, era como cumprindo uma obrigação fastidiosa. Os donos da casa evitavam se aproximar dele, e o deixavam na sua sujeira, nunca tinham uma palavra boa para ele. Olhavam-no sempre como a perguntar quando ele iria. E muitas vezes a senhora que se comovera com a sua história, contada na porta em voz soluçante, e o acolhera, mostrava evidentes sinais de arrependimento.