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Para o Sem-Pernas elas o acolhiam de remorso. Porque o Sem-Pernas achava que eles eram todos culpados da situação de todas as crianças pobres. E odiava a todos, com um ódio profundo. Sua grande e quase única alegria era calcular o desespero das famílias após o roubo, ao pensar que aquele garoto esfomeado a quem tinham dado comida quem fizera o reconhecimento da casa e indicara a outras criar esfomeadas onde estavam os objetos de valor.

Mas desta vez estava sendo diferente. Desta vez não o deixa na cozinha com seus molambos, não o puseram a dormir no quintal. Deram-lhe roupa, um quarto, comida na sala de jantar. Era como hóspede, era como um hóspede querido. E fumando o seu cigarro escondido o Sem-Pernas pergunta a si mesmo por que está se escondendo para fumar, o Sem-Pernas pensa sem compreender. Não compreende nada do que se passa. Sua cata está franzida. Lembra os dias da cadeia, a surra que lhe deram, os sonhos que nunca deixaram de persegui-lo. E, de súbito, tem medo de que nesta casa sejam bons para ele. Sim, um grande medo de que sejam bons para ele. Não sabe mesmo porque, mas tem medo. E levanta-se, sai do seu esconderijo e vai fumar bem por baixo da janela da senhora. Assim verão que é um menino perdido, que não merece um quarto, roupa nova, comida na sala de jantar. Assim o mandarão para a cozinha, ele poderá 1evar para diante sua obra de vingança, conservar o ódio no seu coração. Porque se esse ódio desaparecer, ele morrerá, não terá nenhum motivo para viver. E diante dos seus olhos passa a visão do homem de colete que vê os soldados a espancar o Sem-Pernas e ri numa gargalhada brutal. Isso há de impedir sempre o Sem-Pernas de ver o rosto bondoso de dona Ester, o gesto protetor das mãos do padre José Pedro, a solidariedade dos músculos grevistas do estivador João de Adão. Será sozinho e seu ódio alcança a todos, brancos e negros, homens e mulheres, ricos e pobres. Por isso teme que sejam bons para cons Pela tarde o dono da casa, Raul, chegou do seu escritório. Era advogado de muito nome, enriquecera na profissão, era catedrático na Faculdade de Direito, mas antes de tudo era um colecionador. Tinha uma boa galeria de quadros e tinha moedas antigas, obras raras de arte. O Sem-Pernas viu quando ele entrou. Neste momento o Sem-Pernas via as gravuras de um livro para crianças e ria sozinho do elefante tolo a quem o macaco enganava. Raul não o viu, subiu as escadas. Mas depois a empregada veio chamar o Sem-Pernas e o levou ao quarto de dona Ester. Raul ali estava de manga a de camisa, fumando um cigarro e olhou o menino com um sorriso divertido, já que o Sem-Pernas mostrava uma cara muito atrapalhada na entrada do quarto: - Passe...

O Sem-Pernas entrou capengando, não tinha onde botar as mãos. Dona Ester falou com bondade:

- Sente, meu filho, não tenha medo, não...

O Sem-Pernas sentou-se na ponta de uma cadeira e ficou esperando. O advogado o estudava, mirando seu rosto, mas era com simpatia, e o Sem-Pernas preparava as respostas para as inevitáveis perguntas. Contou novamente a história inventada pela manhã, mas quando começou a chorar abundantes lágrimas o advogado mandou que ele parasse e se levantou, dirigindo-se à janela. O Sem-Pernas compreendeu que ele estava comovido, e este resultado da sua arte o fez ficar orgulhoso. Sorriu só para si. Mas agora o advogado se aproximava de dona Ester e a beijava na testa e depois nos lábios. O Sem-Pernas baixou os olhos. Raul andou até ele, botou a mão no seu ombro e falou:

- Deixe estar, que agora você não passa mais fome. Vá... Vá brincar, vá ver os livros. À noite nós vamos ao cinema. Você gosta de cinema?

- Gosto, sim senhor.

O advogado o despedia com um gesto. O Sem-Pernas saiu, mas ainda viu Raul se aproximar de dona Ester e dizer:

- És uma santa. Vamos fazer dele um homem...

Era a hora do crepúsculo, as luzes se acendiam e o Sem-Pernas pensou que nesta hora os Capitães da Areia percorriam a cidade procurando o que comer.

Pena que no cinema não pudesse gritar quando o mocinho surrava o vilão, como fazia nas vezes que conseguira penetrar no galinheiro do Olímpia ou do cinema de Itapagipe. Ali, no Guarani, luxuoso e de cômodas cadeiras, tinha que ouvir o filme em silêncio e num momento que não se conteve e soltou um assovio, Raul o olhou.

É verdade que sorria, mas também é certo que fez um gesto para que Sem-Pernas não assoviasse mais.

Depois o levaram a tomar sorvete no bar que havia em frente ao cinema. O Sem-Pernas, enquanto tomava seu gelado, pensava em que ia cometendo uma irremediável tolice quando o advogado perguntara o que ele queria. Estivera para pedir uma cerveja bem geladinha. Mas se contivera em tempo e pedira o sorvete.

No automóvel o advogado foi na frente guiando e o Sem-Pernas foi atrás com dona Ester, que conversava com ele. A conversa era difícil para o Sem-Pernas, que tinha que controlar sua terminologia que era escassa e repleta de palavrões. Dona Ester perguntava coisas de sua mãe, o Sem-Pernas respondia como podia, fazendo grande esforço para reter os detalhes que inventava para posteriormente cair em contradição. Por fim chegaram na casa da Graça e dona Ester conduziu o Sem-Pernas para o quarto em cima da garagem:

- Não tem medo de dormir aí sozinho?

- Não, senhora...

- Isso é por poucos dias. Depois lhe porei lá em cima, no quarto que foi de Augusto...

- Não precisa, dona Ester, aqui tá muito bom.

Ela se acercou dele e o beijou na face:

- Boa noite, meu filho.

Saiu, cerrando a porta. O Sem-Pernas ficou parado, sem um gesto, sem responder sequer o boa noite, a mão no rosto, no lugar em que dona Ester o beijara. Não pensava, não via nada. Só a suave carícia do beijo, uma carícia como nunca tivera, uma carícia de mãe. Só a suave carícia no seu rosto. Era como se o mundo houvesse parado naquele momento do beijo e tudo houvesse mudado. Só havia no universo inteiro a sensação suave daquele beijo maternal na face do Sem-Pernas.

Depois foi o horror dos sonhos da cadeia, o homem de colete que ria brutalmente, os soldados que surravam o Sem-Pernas, que corria com a perna aleijada em voltada saleta. Mas de repente chegou dona Ester e o homem de colete e os soldados morreram entre infinitas torturas, porque agora o Sem-Pernas estava vestido com uma roupa de marinheiro e tinha um chicote na mão como o mocinho do cinema.

Oito dias se passaram. Pedro Bala por várias vezes já andara em frente da casa para saber notícias do Sem-Pernas, que tardava a voltar ao trapiche. Já havia tempo mais que suficiente para que o Sem-Pernas soubesse onde se quedavam todos os objetos facilmente transportáveis da casa e as saídas que podiam auxiliar a fuga. Mas em vez de ver o Sem-Pernas, Pedro Bala via era a empregada, que pensava que ele vinha por ela. Certo dia em que conversava com a empregada, Pedro Bala tocou com muito jeito no assunto do Sem-Pernas:

- A moça daí tem um filho, não tem?

- É um menino que ela tá criando. Muito bonzinho.

Pedro Bala sorriu, porque sabia que o Sem-Pernas, quando queria, se fazia passar pelo melhor menino do mundo. A empregada continuou:

- É um pouco mais moço que você, mas é mesmo um menino.

Não é assim um perdido como você, que até já dorme com mulher... - e ria para Pedro Bala.

- Foi tu que tirou meu cabaço...

- Não diga coisa feia. Demais é mesmo mentira.

- Juro.

Ela gostaria que fosse, e se bem desconfiasse muito que não, gostava que ele lhe dissesse aquilo. Se sentia não só como amante do menino, mas um pouco como mãe também.