- Vem hoje, que eu te ensino um modo gostoso...
- De noite, na esquina... Mas diz um troço: tu não trepa com esse menino daqui?
- Esse nem sabe que é isso... É um tolinho. Menino mimado.
Tu tá feito bobo. Não vê que eu não me passo...
De outra vez Pedro Bala conseguiu ver o Sem-Pernas. Este estava estirado no jardim o gato roncava ao seu lado, espiando um livro de figuras, e Pedro Bala ficou espantadíssimo quando o viu vestido com uma calça de casimira cinza e uma blusa de seda. Até o cabelo do Sem-Pernas estava penteado, e Pedro Bala quedou um momento boquiaberto, sem sequer assoviar para o Sem-Pernas. Afinal voltou a si e assoviou. O Sem-Pernas se pôs logo de pé, viu o Bala do outro lado da rua. Fez um sinal para que ele o esperasse, saiu pelo portão, após ver que ninguém da casa estava próximo.
Pedro Bala andava para a esquina, e Sem-Pernas o acompanhou. Quando chegou perto, ainda mais se espantou Pedro Bala:
- Peste! Tu tá até cheirando, Sem-Pernas.
O Sem-Pernas fez uma cara de aborrecimento, mas Bala continuou:
- Tu tá dez vez mais elegante que o Gato. Puxa! Se tu aparecer assim na toca assim tratavam o trapiche os outros vai dar em cima de tu. Tu tá mesmo uma teteia...
- Não chateia... Tou vendo as coisas. Não demora dou o fora, tu pode vim com os outros.
- Desta vez tu tá demorando...
- É que os troço melhor tão trancado mentiu o Sem-Pernas - Vê se tu te arranja.
Depois lembrou-se:
- O Gringo andou ruim. Quase bate o trinta e sete. Andou por pouco. Se não fosse Don'Aninha, que deu beberagem a ele que botou ele em pé, tu não via mais ele. Tá mais magro que um espeto...
E com essa notícia se despediu, dando mais uma vez pressa ao Sem-Pernas.
O Sem-Pernas voltou a se estender no jardim. Mas agora não via as figuras do livro. Via era o Gringo. O Gringo fora um dos mais perseguidos pelo Sem-Pernas no grupo. Filho de árabes, falava com uma pronúncia esquisita, e isso dava lugar a piadas consecutivas do Sem-Pernas. O Gringo não era forte e nunca conseguira ser importante entre os Capitães da Areia, se bem Pedro Bala e Professor procurassem dar lugar a isso. Gostavam de ter entre eles um estrangeiro ou quase estrangeiro. Mas o Gringo se contentava com pequenos furtos, evitava os assaltos arriscados e ideava um baú cheio de bugigangas para vender nas ruas às criadas das casas ricas. O Sem Pernas o maltratava sem piedade, burlando dele, do seu falar arrevesado, da sua falta de coragem. Mas agora, deitado sobre a grama macia do jardim rico, vestido com boa roupa, penteado e com perfume, um livro de figuras ao lado, o Sem-Pernas pensava no Gringo quase morrendo, enquanto ele comia bem e vestia bem. Não só o Gringo estivera quase morrendo. Durante aqueles oito dias os Capitães da Areia continuaram mal vestidos, mal alimentados, dormindo sob a chuva no trapiche ou embaixo das pontes. Enquanto isso, o Sem-Pernas dormia em boa cama, comia boa comida, tinha até uma senhora que o beijava e o chamava de filho. Se sentiu como um traidor do grupo. Era igual àquele doqueiro do qual fala João de Adão cuspindo no chão e passando o pé em cima com desprezo. Aquele doqueiro que na greve grande se passara para o outro lado, para o lado dos ricos, furara a greve, fora contratar homens de fora para trabalhar nas docas. Nunca mais um homem do cais apertou sua mão, nunca mais um o tratou como amigo. E se para alguém o Sem-Pernas abria exceção no seu ódio, que abrangia o mundo todo, era para as crianças que formavam os Capitães da Areia. Estes eram seus companheiros, eram iguais a ele, eram as vítimas de todos os demais, pensava o Sem-Pernas. E agora sentia que os estava abandonando, que estava passando para o outro lado. Com este pensamento se sobressaltou, sentou-se. Não, ele não os trairia.Antes de tudo estava a lei do grupo, a lei dos Capitães da Areia. Os que a traíam eram expulsos e nada de bom os esperava no mundo. E nunca nenhum a havia traído do modo como o Sem-Pernas a ia trair. Para virar menino mimado, para virar uma daquelas crianças que eram eterno motivo de galhofa para eles. Não, não os trairia. Teriam bastado três dias para ele localizar os objetos de valor da casa. Mas a comida, a roupa, o quarto, e mais que a comida, a roupa e o quarto, o carinho de dona Ester tinham feito que ele passasse já oito dias. Tinha sido comprado por este carinho como o estivador fora comprado por dinheiro. Não, não trairia. Mas aí pensou se não ia trair dona Ester. Ela confiara nele. Ela também na sua casa tinha uma lei como os Capitães da Areia: só castigava quando havia erro, pagava o bem com o bem. O Sem-Pernas ia trair essa lei, ia pagar o bem com o mal. Lembrou-se que das outras vezes, quando dava o fora de uma casa para ela ser assaltada, era uma grande alegria que o invadia. Desta vez não tinha alegria nenhuma. Seu ódio para todos não desaparecera, é verdade. Mas abrira uma exceção para a gente daquela casa, porque dona Ester o chamava de filho e o beijava na face. O Sem-Pernas luta consigo mesmo. Gostaria de continuar naquela vida. Mas que adiantaria isso para os Capitães da Areia? E ele era um deles, nunca poderia deixar de ser um deles porque uma vez os soldados o prenderam e o surraram enquanto um homem de colete ria brutalmente. E o Sem-Pernas se decidiu. Mas olhou com carinho as janelas do quarto de dona Ester e ela, que o espiava, notou que ele chorava: - Está chorando, meu filho? - e desapareceu da janela para vir para junto dele.
Só então o Sem-Pernas viu que estava mesmo chorando, limpou as lágrimas, mordeu a mão. Dona Ester chegava para junto dele:
- Está chorando, Augusto? Aconteceu alguma coisa?
- Não, senhora. Não estou chorando, não...
- Não minta, meu filho. Bem que eu vejo... O que passou? Está se lembrando da sua mãe?
E o trouxe para junto de si, sentou-se no banco, encostou a cabeça do Sem-Pernas no seu seio maternal.
- Não chore por sua mãe. Agora você tem outra mãezinha que lhe quer bem e fará tudo para substituir a que você perdeu... e ele faria tudo para substituir o filho que ela perdera, ouviu o Sem-Pernas dentro de si.
Dona Ester o beijou na face onde as lágrimas corriam:
- Não chore, que sua mãezinha fica triste.
Então os lábios do Sem-Pernas se descerraram e ele soluçou, chorou muito encostado ao peito de sua mãe. E enquanto a abraçava e se deixava beijar, soluçava porque a ia abandonar e, mais que isso, a ia roubar. E ela talvez nunca soubesse que o Sem-Pernas sentia que ia roubar a si próprio também. Como não sabia que o choro dele, que os soluços dele eram um pedido de perdão.
Os acontecimentos se precipitaram, porque Raul teve que fazer uma viagem ao Rio de Janeiro, a negócios importantes de advocacia. E o Sem-Pernas achou que não havia melhor ocasião para o assalto.
Na tarde em que se foi, mirou a casa toda, acariciou o gato Berloque, conversou com a criada, olhou os livros de gravura. Depois foi ao quarto de dona Ester, disseque ia até o Campo Grande passear.
Ela então lhe contou que Raul traria uma bicicleta do Rio para ele e então todas as tardes ele andaria nela pelo Campo Grande, em vez de passear a pé. O Sem-Pernas baixou os olhos, mas antes de sair veio até dona Ester e a beijou. Era a primeira vez que a beijava, e ela ficou muito alegre. Ele disse baixinho, arrancando as palavras de dentro de si:
- A senhora é muito boa. Eu nunca vou esquecer...
Saiu e não voltou. Essa noite dormiu no seu canto no trapiche. Pedro Bala tinha ido com um grupo para a casa. Os outros tinham rodeado o Sem-Pernas, admirando suas roupas, seu cabelo assentado, o perfume que evolava do seu corpo. Mas o Sem-Pernas meteu o braço em um, foi resmungando para seu canto. E ali ficou mordendo as unhas, sem dormir, angustiado, até que Pedro Bala voltou com os outros, trazendo os resultados do assalto. Comunicou ao Sem-Pernas que fora a coisa mais canja do mundo, que ninguém dera fé na casa, que todos tinham continuado dormindo. Talvez que nem no dia seguinte descobrissem o roubo. E mostrava os objetos de ouro e de prata: