- Amanhã Gonzales dá uma dinheirama por isso...
O Sem-Pernas fechava os olhos para não ver. Depois que todos foram dormir, ele se aproximou do Gato:
- Tu quer fazer um negócio comigo?
- Que é?
- Eu dou essa roupa, tu me dá a sua...
O Gato olhou cheio de espanto. A sua roupa era a melhor do grupo, sem dúvida. Mas era roupa velha, estava muito longe de valer a boa roupa de casimira que o Sem-Pernas vestia. Tá doido, pensou o Gato enquanto respondia:
- Se topo? Nem se pergunta.
Trocaram a roupa. O Sem-Pernas voltou ao seu canto, procurou dormir.
Na rua vinha doutor Raul com dois guardas. Eram os mesmos soldados que o haviam espancado na cadeia. O Sem-Pernas corria, mas doutor Raul o apontava e os soldados o levavam para a mesma sala. A cena era a mesma de sempre: os soldados que se divertiam a fazê-lo correr com sua perna capengando e o espancavam e o homem de colete que ria. Só que na sala estava também dona Ester, que o olhava com os olhos tristes e dizia que ele não era mais seu filho, era um ladrão. E os olhos de dona Ester o faziam sofrer mais que as pancadas dos soldados, mais que o riso brutal do homem.
Acordou molhado de suor, fugiu da noite do trapiche, a madrugada o encontrou vagando no areaL No outro dia, à noite, Pedro Bala viera trazer o dinheiro da sua parte no furto. Mas o Sem-Pernas o recusou sem dar explicações.
Depois Volta Seca chegou com um jornal que trazia notícias de Lampião. Professor leu a notícia para Volta Seca e ficou vendo as outras coisas que o jornal trazia.Então chamou:
- Sem-Pernas! Sem-Pernas!
O Sem-Pernas veio. Outros vieram com ele e formaram um círculo. Professor disse:
- Isso aqui é com tu, Sem-Pernas...
E leu uma notícia no jornaclass="underline"
Ontem desapareceu da casa número... da rua... Graça, um filho dos donos da casa, chamado Augusto. Deve ter se perdido na cidade que pouco conhecia. É coxo de uma perna, tem treze anos de idade, é muito tímido, veste roupa de casimira cinza. A polícia o procura para o entregar aos seus pais aflitos, mas até agora não o encontrou.A família gratificará bem quem der noticias do pequeno Augusto e o conduz a sua casa.
O Sem-Pernas ficou calado. Mordia o lábio. Professor disse:
- Ainda não descobriram o furto...
Sem-Pernas fez que sim com a cabeça. Quando descobrissem o furto não o procurariam mais como a um filho desaparecido. Barandão fez uma cara de riso e gritou:
- Tua família tá te procurando, Sem-Pernas. Tua mamãe tá te procurando pra dar de mamar a tu...
Mas não disse mais nada, porque o Sem-Pernas já estava em cima dele e levantava o punhal. E esfaquearia sem dúvida o negrinho se João Grande e Volta Seca não o tirassem de cima dele. Barandão saiu amedrontado. O Sem-Pernas foi indo para o seu canto, um olhar de ódio para todos. Pedro B ala foi atrás dele, botou a mão em seu ombro:
- São capazes de não descobrir nunca o roubo, Sem-Pernas. Nunca saber de você... Não se importe, não.
- Quando doutor Raul chegar vão saber...
E rebentou em soluços, que deixaram os Capitães da Areia estupefatos. Só Pedro Bala e o Professor compreendiam, e este abanava as mãos porque não podia fazer nada. Pedro Bala puxava uma conversa comprida sobre um assunto muito diferente. Lá fora o vento corria sobre a areia e seu ruído era como uma queixa.
Capítulo 9 - Manhã Como um Quadro
Pedro Bala, enquanto sobe a ladeira da montanha, vai pensando que não existe nada melhor no mundo que andar assim, ao azar, nas ruas da Bahia.Algumas destas ruas são asfaltadas, mas a grande, a imensa maioria é calçada de pedras negras. Moças se debruçam nas janelas dos casarões antigos e ninguém pode saber se é uma costureira que romanticamente espera casar com noivo rico ou se é uma prostituta que o mira de um balcão velhíssimo, enfeitado apenas de flores. Entram mulheres de negros véus nas igrejas. O sol bate nas pedras ou no asfalto do calçamento, ilumina os telhados das casas. Na sacada de um sobradão, flores medram em pobres latas. São de diversas cores e o sol lhes dá seu diário alimento de luz. Os sinos da igreja da Conceição da Praia chamam as mulheres de véu que passam apressadas.No meio da ladeira um preto e um mulato estão curvados sobre uns dados que o preto acabou de jogar. Pedro Bala, ao passar, cumprimenta o negro: - Como vai, Coruja Branca?
- E tu, Bala? Como vai essa prosopopeia?
Mas o mulato já atirou os dados e o negro se volta todo para o jogo. Pedro Bala continua seu caminho. O Professor vai com ele. Sua figura magra se atira para frente como se lhe fosse difícil vencer a ladeira.
Mas sorri da festa do dia. Pedro Bala vira-se para ele e surpreende seu sorriso. A cidade está alegre, cheia de sol. Os dias da Bahia parecem dias de festa, pensa Pedro Bala, que se sente invadido também pela alegria.
Assovia com força, bate risonhamente no ombro de Professor. E os dois riem, e logo a risada se transforma em gargalhada. No entanto, não têm mais que uns poucos níqueis no bolso, vão vestidos de farrapos, não sabem o que comerão. Mas estão cheios da beleza do dia e da liberdade de andar pelas ruas da cidade. E vão rindo sem ter do que, Pedro Bala com o braço passado no ombro de Professor. De onde estão podem ver o Mercado e o cais dos saveiros e mesmo o velho trapiche onde dormem. Pedro Bala se recosta no muro da ladeira e diz a Professor:
- Tu devia fazer uma pintura disto... É porreta.
A fisionomia do Professor se fecha:
- Eu sei que nunca há de ser...
- Que?
- Tem vez que me topo pensando... e Professor mira o cais lá embaixo, os saveiros parecendo brinquedos, os homens miúdos carregando sacos nas costas.
Continua com a voz áspera como se alguém o tivesse batido:
- Eu penso fazer um dia um bocado de pintura daqui...
- Tu tem jeito. Se tu tivesse andado pela escola...
- ...mas nunca pode ser um troço alegre, não...
Professor parece não ter ouvido a interrupção de Pedro Bala. Agora está com os olhos longe e parece ainda mais fraco.
- Por quê? - Pedro Bala está espantado.
- Tu não vê que tudo é mesmo uma beleza? Tudo alegre...
Pedro Bala apontou os telhados da cidade baixa:
- Tem mais cores que o arco-íris...
- É mesmo... Mas tu espia os homem, tá tudo triste. Não tou falando dos rico. Tu sabe. Falo dos outros, dos das docas, do mercado.
Tu sabe... Tudo com cara de fome, eu nem sei dizer. É um troço que sinto...
Pedro Bala não estava mais espantado:
- Por isso João de Adão já fez um bocado de greve nas docas. Ele diz que um dia as coisas vira, tudo vai ser de vice-versa...
- Também já li um livro... Um livro de João de Adão. Se eu tivesse estado numa escola como tu diz, tinha sido bom. Eu um dia ia fazer muito quadro bonito. Um dia bonito, gente alegre andando, rindo, namorando assim como aquela gente de Nazaré, sabe? Mas cadê escola? Eu quero fazer um desenho alegre, sai o dia bonito, tudo bonito, mas os homens sai triste, não sei não... Eu queria fazer uma coisa alegre.
- Quem sabe se não é melhor mesmo fazer uma coisa como tu faz? Pode até dá mais bonito, mais vistoso.
- Que é que tu sabe? Que é que eu sei? A gente nunca andou em escola... Eu tenho vontade de fazer a cara dos homens, a figura das ruas, mas nunca tive na escola, tem um bocado de coisa que eu não sei...
Fez uma pausa, olhou Pedro Bala que o escutava, continuou:
- Tu já deu uma espiada na Escola de Belas-Artes? É um beleza rapaz. Um dia andei de penetra, me meti numa sala. Tava tudo vestido de camisão, nem me viram. E tavam pintando uma mulher nua... Se um dia eu pudesse...
Pedro Bala ficou pensativo. Olhava Professor como que pensando. Logo falou com um ar muito sério: