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- Tu sabe o preço?

- Que preço?

- De pagar na escola? O professor?

- Que história é essa?

- A gente se reunia, pagava pra tu...

Professor riu:

- Tu nem sabe... Tem tanta complicação... Não pode não, deixa de tolice.

- João de Adão disse que um dia a gente pode ter escola...

Saíram andando. Professor parecia ter perdido a alegria do dia. Como que ela se afastara para longe dele. Então Pedro Bala deu-lhe um soco de leve:

- Um dia tu ainda bota um bocado de pintura numa sala da rua Chile, mano. Sem escola sem nada. Nenhum destes bananas da escola faz uma rara como tu... Tu tem é jeito...

Professor riu. Pedro Bala riu também:

- E tu faz meu retrato, hein. Bota o nome embaixo, não bota?

Capitão Pedro Bala, macho valente.

Tomou uma atitude de lutador, um braço estirado. Professor riu, Bala também riu, logo o riso se transformou em gargalhada. E só pararam de gargalhar para aderira um grupo de desocupados que se reunira em torno a um tocador de violão. O homem tocava e cantava uma moda da cidade da Bahia:

"Quando ela disse adeus... meu peito em cruz transformou..."

Eles aderiram. Pouco depois cantavam junto ao homem. E com eles cantavam todos e eram saveiristas, malandros, doqueiros, até uma prostituta cantava. O homem do violão estava todo entregue a sua música, não via mesmo ninguém.

Se o homem não se levantasse para ir embora, ainda tocando seu violão e cantando, eles teriam se esquecido de continuar a caminhada para a cidade alta.Mas o homem foi embora levando a alegria da sua música. O grupo se dispersou, um vendedor de jornais passou apregoando os diários da manhã. Professor e Pedro Bala continuaram a subir a ladeira. Do largo do Teatro subiram para a rua Chile. Professor tirou o giz do bolso, sentou-se no passeio. Pedro Bala ficou a seu lado. Quando viram vir o casal, Professor começou a desenhar. Fez um desenho o mais rápido que pôde. O casal estava muito perto já, Professor agora fazia as caras. A moça sorria, sem dúvida seriam noivos. Mas iam tão entretidos na sua conversa que nem notaram o desenho. Foi preciso que Pedro Bala se adiantasse até eles:

- Não pise na cara da moça, senhor...

O homem olhou para Pedro Bala e já ia dizer um desaforo quando a moça viu o desenho do Professor e chamou sua atenção:

- Que bom... e batia as mãos como uma menina a quem tivessem dado uma boneca de presente.

O rapaz espiou e sorriu. Voltou-se para Pedro Bala:

- Foi você quem desenhou, garoto?

- Foi aqui o meu companheiro, o pintor Professor...

Professor dava os últimos retoques no bigode elegantíssimo do homem. Depois passou a aperfeiçoar a figura da moça. Ela então ficou no jeito de quem estava posando.Riam os dois, ela se dependurava no braço do amado. O homem puxou a carteira de níqueis, atirou uma prata de dois mil-réis, que Pedro Bala apanhou no ar. Seguiram. O desenho ficou no meio do passeio.Umas senhoritas que vinham das compras o viram de longe e uma disse:

- Vamos depressa, que aquilo parece que é um anúncio do novo filme de Barrymore... Dizem que é um amor... E ele é tão forte...

Pedro Bala e Professor ouviram e abriram na gargalhada. E abraçados seguiram juntos na liberdade das ruas.

Quase junto do palácio do governo pararam novamente. Professor ficou de giz na mão esperando que saísse do ponto do bonde um pato. Pedro Bala assoviava ao seu lado. Breve teriam o dinheiro para um bom almoço e ainda para levar um presente para Clara, a amante do Querido-de-Deus, que fazia anos naquele dia.

Uma velhota deu dez tostões por seu desenho. A velhota era feia e Professor tinha conservado sua feiura no desenho. Pedro Bala notou:

- Se tu tivesse feito ela mais bonita e mocinha, ela te dava mais.

Professor riu. Assim passaram a manhã, Professor fazendo a cara dos que vinham pela rua, Pedro Bala recolhendo as pratas ou os níqueis que jogavam. Quase meio-dia veio um homem que fumava numa piteira que parecia cara. Pedro Bala correu para avisar ao Professor:

- Faz deste que parece que é um pato cheio da nota...

Professor começou a desenhar a figura magra do homem. A piteira longa, os cabelos encaracolados que apareciam sob o chapéu. O homem trazia também um livro na mão e Professor teve um desejo irresistível de fazer o desenho do homem lendo o livro. O homem ia passando, Pedro Bala chamou sua atenção:

- Olhe seu retrato, senhor.

O homem tirou a longa piteira da boca, perguntou a Bala:

- O que, meu filho?

Pedro Bala apontou o desenho em que o Professor trabalhava. O homem aparecia sentado se bem não houvesse cadeira nem nada estava sentado no ar, fumando sua piteira e lendo seu livro. O cabelo encaracolado voava sob o chapéu. O homem examinou o desenho atentamente, foi espiá-lo em diversos ângulos, nada dizia. Quando o Professor deu o trabalho por concluído, ele perguntou:

- Onde você aprendeu desenho, meu caro?

- Em lugar nenhum...

- Em lugar nenhum? Como?

- É, sim senhor...

- E como desenha?

- Me dá vontade, pego, desenho.

O homem estava um pouco incrédulo, mas sem dúvida recordou outros exemplos no fundo da sua memória:

- Quer dizer que você nunca estudou desenho?

- Nunca, não senhor.

- Posso garantir falou Pedro Bala. - Nós mora junto, eu sei.

- Então é uma verdadeira vocação... - murmurou o homem.

Voltou ao examinar o desenho. Tirou uma longa fumaçada da sua piteira. Os dois meninos olhavam para a piteira encantados. O homem perguntou ao Professor:

- Por que você me retratou sentado e lendo o livro?

Professor coçou a cabeça como se fosse uma coisa difícil de responder. Pedro Bala quis falar, mas nada disse, estava atarantado. Por fim Professor explicou:

- Pensei que sentava melhor pro senhor... - coçou de novo a cabeça. - Não sei mesmo...

- É uma verdadeira vocação... - murmurou o homem em voz mais baixa, assim com o jeito de quem havia feito uma descoberta.

Pedro Bala esperava o níquel, mesmo porque o guarda já os olhava desconfiado da esquina. Professor espiava a piteira do homem longa, desenhada a fogo, uma maravilha.Mas o homem continuou:

- Onde você mora?

Pedro Bala não deu tempo a que Professor respondesse. Foi ele quem falou:

- A gente mora na Cidade de Palha...

O homem meteu a mão no bolso e tirou um cartão:

- Você sabe ler?

- A gente sabe, sim senhor respondeu Professor.

- Aí está meu endereço. Eu quero que você me procure. Talvez possa fazer alguma coisa por você.

Professor tomou o cartão. O guarda se encaminhava para ele Pedro Bala se despediu:

- Até logo, doutor.

O homem ia puxando a carteira de níqueis, mas viu o olhar do Professor na sua piteira. Jogou o cigarro fora, entregou a piteira ao menino.

- Isso é pelo meu retrato. Vá a minha casa...

Mas os dois desabaram pela rua Chile, porque o guarda já estava quase junto a eles. O homem olhava meio sem compreender quando ouviu a voz do guarda:

- Lhe roubaram alguma coisa, senhor?

- Não. Por quê?

- Porque como aqueles malandrins estavam aqui junto ao senhor...

- Eram duas crianças... Por sinal que uma com maravilhosa inclinação para a pintura.

- São ladrões - retrucou o guarda. - São dos Capitães da Areia.

- Capitães da Areia? - fez o homem se recordando. - Já li algo... Não são crianças abandonadas?

- Ladronas, isso são... Tenha cuidado, senhor, quando eles se aproximarem do senhor. Veja se não lhe falta nada...

O homem fez que não com a cabeça e olhou a rua. Mas não havia nem rastro dos dois meninos. O homem agradeceu ao guarda, afirmando mais uma vez que não tinha sido furtado, e desceu a rua, murmurando:

- Assim que se perdem os grandes artistas. Que pintor não seria!