O guarda o espiava. Depois comentou para os botões da farda:
- Bem dizem que estes poetas são doidos...
Professor exibia a piteira. Estava agora nos fundos de um arranha-céu, onde existia um restaurante chique. Pedro Bala sabia como conseguir do cozinheiro os restos do menu. Esperavam o almoço na rua deserta. Depois que comeram, Pedro Bala ofereceu cigarros e o Professor se dispôs a fumar na piteira que o homem lhe dera. Procurou limpá-la:
- O bicho era magro como um espeto. É capaz de ser tutu...
Como não achou coisa melhor com que limpar, fez do cartão do homem um palito e o enfiou na piteira. Quando terminou, jogou o cartão na rua. Pedro Bala perguntou:
- Por que tu não guarda?
- Pra que quero? e o Professor riu, Pedro Bala riu também e por um momento as suas gargalhadas encheram a rua. Riam assim sem motivo, pelo prazer de rir.
Mas Pedro Bala se fez sério:
- O homem parece que era bem capaz de ajudar a tu ser um pintor... - apanhou o cartão e leu o nome do homem. - Tu devia guardar. Quem sabe?
Professor baixou a cabeça:
- Deixa de ser besta, Bala. Tu bem sabe que do meio da gente só pode sair ladrão... Quem é que quer saber da gente? Quem? Só ladrão, só ladrão... - e sua voz se elevava, agora gritava com ódio.
Pedro Bala fez que sim com a cabeça, sua mão soltou o cartão, que caiu na sarjeta. Agora não riam mais e estavam tristes na alegria da manhã cheia de sol, da manhã igual a um quadro de um pintor das Belas-Artes.
Operários passavam para o trabalho, após o almoço pobre, e era tudo que eles viam, que eles conseguiam ver na manhã.
Capítulo 10 - Alastrim
Omolu mandou a bexiga negra para a cidade. Mas lá em cima os homens ricos se vacinaram, e Omolu era um deus das florestas da África, não sabia destas coisas de vacina. E a varíola desceu para a cidade dos pobres e botou gente doente, botou negro cheio de chaga em cima da cama. Então vinham os homens da Saúde Pública, metiam os doentes num saco, leva para o lazareto distante. As mulheres ficavam chorando, porque sabiam que eles nunca mais voltariam.
Omolu tinha mandado a bexiga negra para a cidade alta, para a cidade dos ricos. Omolu não sabia da vacina, Omolu era um deus das florestas da África, que podia saber de vacinas e coisas científicas? Mas como a bexiga já estava solta e era a terrível bexiga negra, Omolu teve que deixar que ela descesse para a cidade dos pobres. Já que a soltara, tinha que deixar que ela realizasse sua obra. Mas como Omolu tinha pena dos seus filhinhos pobres, tirou a força da bexiga negra, virou em alastrim, que é uma bexiga branca e tola, quase um sarampo. Apesar disto, os homens da Saúde Pública vinham e levavam os doentes para o lazareto. Ali as famílias não podiam ir visitá-los, eles não tinham ninguém, só a visita do médico. Morriam sem ninguém saber e quando um conseguia voltar era mirado como um cadáver que houvesse ressuscitado. Os jornais falavam da epidemia de varíola e da necessidade da vacina. Os candomblés batiam noite e dia, em honra a Omolu, para aplacar a fúria de Omolu. O pai de santo Paim, do Alto do Abacaxi, preferido de Omolu, bordou uma toalha branca de seda, com lantejoulas, para oferecer a Omolu e aplacar sua raiva. Mas Omolu não quis, Omolu lutava contra a vacina.
Nas casas pobres as mulheres choravam. De medo do alastrim, de medo do lazareto.
Almiro foi o primeiro dos Capitães da Areia que caiu com alastrim. Uma noite, quando o negrinho Barandão o procurou no seu canto para fazer o amor aquele amor que Pedro Bala proibira no trapiche, Almiro lhe disse:
- Tou com uma coceira danada.
Mostrou os braços já cheios de bolhas a Barandão:
- Parece que também tou queimando de febre.
Barandão era um negrinho corajoso, todo o grupo sabia disto. Mas da bexiga, da moléstia de Omolu, Barandão tinha um medo doido, um medo que muitas raças africanas tinham acumulado dentro dele. E sem se preocupar que descobrissem suas relações sexuais com Almiro saiu gritando entre os grupos:
- Almiro tá com bexiga... Gentes, Almiro tá com bexiga.
Os meninos foram se levantando aos poucos e se afastando receosos do lugar onde estava Almiro. Este começou a soluçar. Pedro Bala não tinha chegado ainda. Professor, o Gato e João Grande também andavam por fora. Daí ter sido o Sem-Pernas quem domino a situação. O Sem-Pernas nestes últimos tempos andava cada vez mais arredio, quase não falava com ninguém. Fazia espantosas burlas de todo mundo, por tudo puxava uma briga, só respeitava mesmo Pedro Bala. Pirulito rezava por ele mais que por nenhum, e por vezes pensava que Satanás tinha se metido no corpo do Sem-Pernas. O padre José Pedro era paciente com ele, mas também do padre o Sem-Pernas se afastara. Não queria saber de ninguém, conversa em que ele se metia era conversa que terminava em briga.
Quando o Sem-Pernas passou entre os grupos, todos se afastaram. Quase o temiam tanto quanto à bexiga. O Sem-Pernas tinha arranjado por aqueles dias um cachorro ao qual se dedicava inteiramente. A princípio, quando o cão aparecera no trapiche, esfomeado, Sem-Pernas o maltratou quanto pôde. Mas terminou por acarinhá-lo e tomar para si. Agora como que vivia inteiramente para o cachorro. E por isso voltou só para levar o cão, que o acompanhara, para longe de Almiro. Depois andou novamente para onde estavam os menino. Estes cercavam Almiro de longe. Apontavam as bolhas que apareciam no peito do menino. Antes de tudo, Sem-Pernas falou com sua voz fanhosa para Barandão:
- Agora tu vai ter bexiga na piroca, negro burro.
Barandão o olhou assustado. Depois, Sem-Pernas falou para todos, apontando Almiro com o dedo:
- Ninguém aqui vai ficar bexiguento só por causa deste freso.
Todos o olhavam, esperando o que ele diria. Almiro soluçava, as mãos no rosto, encolhido na parede. Sem-Pernas falava:
- Ele vai sair daqui agorinha mesmo. Vai se meter em qualquer canto da rua até que os mata-cachorro da saúde pegue ele e leve pro lazareto.
- Não. Não rugiu Almiro.
- Vai, sim fez Sem-Pernas. - A gente não vai chamar os mata-cachorro aqui pra toda policia saber onde a gente se acoita. Tu vai por bem ou por mal e leva teus trapos. Vai pro inferno, que a gente não vai ficar com bexiga por você. Por amor de você, xibungo...
Almiro fazia que não, que não, e seus soluços enchiam o trapiche. 0 negrinho Barandão tremia, Pirulito clamava que era castigo de Deus por causa dos pecados deles, os outros não sabiam que fazer. Sem-Pernas se preparava para forçar sua ideia. Pirulito se abraçou com um quadro de Nossa Senhora e disse:
- Vamos rezar todo mundo, que isto é um castigo de Deus pros pecados da gente. A gente peca muito, Deus tá castigando. Vamos pedir perdão... e sua voz era como um clamor, soava anunciando vinganças.
Alguns juntaram as mãos e Pirulito chegou a iniciar um padre-nosso. Mas Sem-Pernas o afastou com uma das mãos:
- Sai, sacrista...
Pirulito ficou rezando em voz baixa ainda atracado com o santo. Parecia um quadro estranho. Ao fundo, Almiro soluçava e dizia que não. Pirulito rezava, os outros estavam indecisos, não sabiam o que fazer. Barandão tremia de medo, pensando que estava contagiado. Sem-Pernas voltou a falar:
- Gente, se ele não quiser sair, a gente bota ele pra fora debaixo de porrada. Senão, tudo vai morrer de bexiga, tudo... Vocês não vê, desgraçados? A gente bota ele pra fora até uma rua onde levem ele pro lazareto.
- Não. Não fazia Almiro. - Pelo amor de Deus.
- Isso é castigo... - fez Pirulito.
- Cala a boca, filho de padre o Sem-Pernas continuava. - Vamos levar ele, gente, já que ele não quer ir por bem.
Como via que os outros ainda estavam irresolutos, marchou para o lado de Almiro e estendeu o pé para lhe dar uma pancada:
- Assim tu vai embora, bexiguento.
Almiro se encolheu mais: