- Não. Tu não pode fazer isso. Eu sou um do grupo. Espera Bala chegar.
- É castigo... É castigo... - a voz de Pirulito ainda irritou mais o Sem-Pernas, que descarregou um pontapé em Almiro.
- Dá o fora, bexiguento. Dá o fora, fresco.
Mas neste instante uma mão o pegou e o sacudiu longe. Volta Seca se plantou entre Almiro e o Sem-Pernas. O mulato levava um revólver na mão e os seus olhos fuzilavam:
- Juro que tem bala e que como um que toque em Almiro - olhou para todos com sua cara sombria.
- Que é que tu tem que fazer aqui, cangaceiro? - Sem-Pernas queria recuperar o domínio da situação.
- Ele não é um soldado de policia pra gente tratar ele assim. É um do grupo, ele falou direito. Vamos esperar Pedro Bala chegar. Ele resolve. E se alguém tocar nele eu queimo igual que fosse um macaco da polícia - e segurava o revólver.Os outros se afastaram aos poucos. Sem-Pernas cuspiu:
- Tudo é uns covarde... - e seguiu para onde o cachorro o esperava. Se deitou ao seu lado e os que ficaram mais perto dele a ouviam murmurar: covardes, covardes.
Volta Seca ficou diante de Almiro com o revólver na mão. Almiro soluçava, e mais alto gritava quando olhava as bolhas que se estendiam pelo seu corpo. Pirulito rezava, pedia a Deus que voltasse a ser suprema bondade, não fosse suprema justiça.
Depois Pirulito se lembrou de chamar o padre José Pedro. Escapuliu pela porta do trapiche, se dirigiu à casa do padre. Mas pelo caminho ainda ia rezando, os olhos dilatados cheios do temor de Deus.
Pedro Bala chegou acompanhado do Professor e de João Grande. Voltavam de um negócio que tinham resolvido bem e comentavam o sucesso entre gargalhadas. O Gato tinha ido com eles, mas não voltara. Ficara em casa de Dalva. Os três entraram no trapiche e a primeira coisa que enxergaram foi Volta Seca com o revólver na mão.
- Que é isso? - perguntou Pedro Bala.
Sem-Pernas se levantou do seu canto, o cachorro o acompanhou:
- Este besta metido a cangaceiro não quer deixar que a gente faça o que resolveu e apontava Almiro. - Aquele fresco tá com a bexiga...
João Grande se encolheu. Pedro Bala olhou Almiro, o Professor andou para onde esta Volta Seca. O mulato não largava o revólver. Pedro perguntou então:
- Como foi, Volta Seca?
- Este tá com a maldita... - mostrou o menino que soluçava. - E aquele macaco mesmo que um soldado quis botar ele no meio da rua pra assistência levar ele lazareto. Eu não tava me metendo. Mas ele não quis ir. Aí eles todos juntos - cuspiu - quis dar nele pra obrigar ele ir. Foi quando ele falou que era do grupo, que eles esperasse que tu chegasse. Eu achei que ele falou direito, fiquei do lado dele... Ele não é um soldado de polícia pra tratar ele assim...
- Tu fez direito, Volta Seca - Pedro Bala bateu no ombro do mulato. Depois olhou Almiro:
- Tu tá mesmo com ela?
O menino inclinou a cabeça e rebentou em soluços. Sem-Pernas gritou:
- Só tem mesmo que fazer o que eu disse. Não pode chamar a assistência aqui que todo mundo fica sabendo onde a gente se acoita. Só tem mesmo que deixar ele numa rua onde passe gente. Vamos fazer, tu queira ou não...
Pedro Bala gritou:
- Quem é o chefe daqui, é tu ou eu? Tu quer que eu te rebente?
Sem-Pernas saiu murmurando. O cachorro veio lamber seus pés, mas ele deu-lhe um pontapé. Logo depois se arrependeu, porém, e começou a acarinhar o cão, enquanto espiava os outros.
Pedro Bala andou até Almiro. João Grande queria vencer o medo e ir para junto de Almiro também. Mas o medo da bexiga era uma coisa enorme nele, era quase maior que sua bondade. Só Professor estava junto de Pedro Bala. Este disse a Almiro: Almiro mostrou os braços cheios de bolhas. Professor disse:
- Deixa eu ver...
Almiro mostrou os braços cheios de bolhas. Professor disse:
- É alastrim. Bexiga negra fica logo preta...
Pedro Bala ficou pensando. Ia um silêncio pelo trapiche. João Grande conseguiu vencer o medo e se aproximou. Mas ia com passo arrastados. Parecia violentar sua própria vontade para chegar até junto de Almiro. Foi quando entrou Pirulito acompanhado do padre José Pedro. O padre deu boas noites e perguntou quem era o doente Pirulito apontou Almiro, o padre se dirigiu para ele, chegou perto, pegou no braço, examinou. Depois disse a Pedro Bala:
- É preciso levar para a assistência...
- Pro lazareto?
- Sim.
- Não, não vai, não fez Pedro Bala.
O Sem-Pernas se levantou outra vez, veio para junto deles:
- Tou dizendo isso há muito tempo. Tem que ir pro lazareto - Não vai repetiu Pedro Bala.
- Por que, meu filho? perguntou o padre José Pedro.
- Tu sabe, padre, que ninguém volta do lazareto. Ninguém volta. E ele é um da gente. um do grupo. A gente não pode fazer isso...
- Mas é a lei, filho.
- Morrer?
O padre mirou Pedro Bala com os olhos abertos. Aquele meninos viviam a lhe dar surpresas, sempre mais adiantados em inteligência do que ele pensava. E, no fundo, o padre sabia que eles tinham razão.
- Não vai, não, padre... - afirmou Pedro Bala.
- Então que é que você vai fazer, meu filho?
- Tratar dele aqui...
- Mas como?
- Chamo Don'Aninha...
- Mas ela não sabe tratar de ninguém.
Pedro Bala ficou confuso. Passado um momento, disse:
- É melhor que morra aqui que no lazareto.
Sem-Pernas se meteu de novo:
- Vai pegar bexiga em todo mundo... - se dirigia aos outros.
- Vai pegar em todo mundo. A gente não pode deixar.
- Cala a boca, desgraçado, senão eu te arrombo disse Pedro.
Mas o padre interveio:
- Ele tem razão, Bala.
- Não vai pro lazareto, padre. O senhor é bom, bem sabe que ele não pode ir. Lá é uma miséria, tudo morre.
O padre bem sabia que era verdade, calou. Foi quando João Grande falou:
- Mas ele não tem casa?
- Quem?
- Almiro. Tem sim.
- Não quero ir para lá... - soluçou Almiro. - Eu tinha fugido.
Pedro Bala se aproximou dele e falou com voz muito mansa:
- Deixa estar, Almiro. Primeiro eu vou lá, falo com tua mãe. Depois a gente leva você. Tu lá fica bem, não tem que ir pro lazareto. E o padre arranja um médico pra cuidar de tu, não arranja, padre?
- Levo, sim prometeu o padre José Pedro.
Havia uma lei que obrigava os cidadãos a denunciarem à Saúde Pública os casos de varíola que conhecessem, para o imediato recolhimento dos variolosos aos lazaretos. O padre José Pedro conhecia a lei, mas, mais uma vez, ficou com os Capitães da Areia contra a lei. Pedro Bala foi à casa de Almiro, a mãe do menino ficou feito louca, era uma lavadeira amigada com um pequeno lavrador além da Cidade de Palha. Foram buscar Almiro e o padre o visitou e depois levou um médico. Mas acontece que o médico estava cavando um lugar na Saúde Pública e denunciou o caso de varíola. Almiro foi mesmo levado para o lazareto e o padre ficou em maus lençóis, pois o médico que se dizia livre-pensador, mas em verdade era espírita denunciou o padre também como encobridor do caso. As autoridades não agiram contra o padre, mas se queixaram ao arcebispado. E o padre José Pedro foi chamado à presença do Cônego Secretário do Arcebispado.Ficou amedrontado.
Pesadas cortinas, cadeiras de alto espaldar, um retrato de Santo Inácio numa parede. Na outra, um crucifixo. Uma grande mesa, custosos tapetes. O padre José Pedro entrou na sala com o coração batendo muito. Não tinha absoluta certeza do motivo por que recebera aquela comunicação do Cônego Secretário do Arcebispado para comparecer ao Palácio Episcopal. No primeiro momento lembrou-se da paróquia que esperava inutilmente havia dois anos. Seria sua paróquia? Sorriu com alegria. Então, sim, iria ser um verdadeiro sacerdote, iria ter almas entregues a si, à sua guia. Serviria a Deus. Mas certa tristeza o invadiu: e suas crianças, as crianças abandonadas das ruas da Bahia, principalmente os Capitães da Areia, como ficariam? Ele era um dos seus poucos amigos. Nunca um outro padre se voltara para aqueles meninos. Se contentavam em ir celebrar de quando em vez uma missa no reformatório, o que os tornava mais antipáticos ao meninos porque atrasava o magro café. O padre José Pedro, enquanto esperava sua paróquia, se dedicara aos meninos abandonados.Não podia dizer que os resultados tivessem sido grandes. Mas era preciso compreender que ele estava fazendo uma experiência, que muita vezes tinha que voltar atrás.Fazia pouco tempo que o padre captar de todo a confiança dos meninos. Estes já o tratavam como amigo, mesmo quando não o levavam a sério como sacerdote. O padre tiver de passar por cima de muita coisa para conseguir a confiança de Capitães da Areia. Mas José Pedro pensava que só Pirulito e a sua vocação pagavam a pena. O padre tivera que fazer muita coisa contra o que lhe haviam ensinado. Pactuara mesmo com coisa que a Igreja condenaria. Mas era o único jeito... Aí o padre lembrou-seque bem podia ser por causa daquilo que o haviam chamado. Devia ter sido por aquilo. Muitas beatas já murmuravam por causa das suas relações com as crianças que viviam do furto. E havia aquele caso de Almiro. Devia ser por aquilo. O primeiro sentimento do padre José Pedro quando descobriu o motivo da comunicação foi um grande temor. Ia ser castigado com certeza, perderia toda esperança de uma paróquia. E o padre José Pedro necessitava de uma paróquia. Sustentava uma mãe velha, uma irmã na Escola Normal. Logo depois pensou que muito possivelmente tudo o que fizera fora errado, seus superiores não aprovariam. E, no Seminário, lhe tinham ensinado a obedecer. Mas pensou nos meninos. Na sua memória passaram as figuras de Pirulito, Pedro Bala, Professor, Sem-Pernas, Boa-Vida, o Gato. Era preciso salvar aqueles pequeninos... As crianças eram a maior ambição de Cristo. Devia se fazer tudo para salvar aquelas crianças. Não era culpa deles se estavam perdidos...