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O Cônego entrou. Nos seus pensamentos o padre nem vira que muitos minutos de espera tinham se passado. Não viu tampouco quando o Cônego entrou com um passo manso.Era alto e muito magro, anguloso, com a batina muito limpa, os raros cabelos que lhe restavam muito bem penteados. Os lábios tinham uma linha dura. Um rosário descia-lhe em torno ao pescoço. Se bem sua figura desse uma impressão de pureza, essa impressão não fazia seus traços mais doces. Não havia nenhuma simpatia humana na sua figura, nos seus traços duros. Como que a pureza era uma couraça que o afastava do mundo. Diziam que era inteligentíssimo, grande orador sacro, célebre pela rigidez dos seus costumes. Ali estava parado diante do padre José Pedro, olhando com olhos observadores a figura baixa do padre, a sua batina suja e remendada em dois lugares, o seu ar de medo, a falta de inteligência que de mistura com a bondade se refletia na cara do padre. Estudou o padre uns poucos minutos. O bastante para penetrar a fundo na alma sem complicações de José Pedro. Tossiu. O padre o viu, levantou-se, beijou humildemente sua mão: - Cônego...

- Sente-se, padre. Temos que conversar.

Olhava com os olhos sem expressão o padre. Sentou-se, cruzou as mãos com grande cuidado, afastou sua reluzente batina da batina suja do padre José Pedro. Sua voz contrastava com sua pessoa.

Podia-se dizer que era uma voz doce, quase feminina, se não fosse um acento de decisão que a cada passo surgia nela. O padre José Pedro baixou a cabeça e esperou que o Cônego falasse. Este começou:

- Este arcebispado tem graves queixas contra o senhor, padre.

Padre José Pedro quis figurar uma cara de quem não entendia. Mas a malícia era superior à sua inteligência e naquele momento ele pensava nos Capitães da Areia.O Cônego sorriu ligeiramente.

- Creio que o senhor já sabe do que se trata...

O padre olhou com uns olhos abertos, mas logo baixou cabeça:

- Só se é as crianças...

- O pecador não pode esconder seu pecado, ele está visível na sua consciência... - e a voz do Cônego tinha perdido aquela nota de doçura.

O padre José Pedro ouviu com pavor. Era o que ele temia. Os seus superiores, aqueles que tinham inteligência para compreender os desejos de Deus, não estavam de acordo com os métodos que ele empregara junto aos Capitães da Areia. Vinha um temor de dentro dele, não propriamente um temor do Cônego, do arcebispo mas um temor de ter ofendido a Deus. E até suas mãos tremiam ligeiramente.

A voz do Cônego retomou sua doçura. Era como uma voz de mulher, doce e suave, mas que negava a um homem suas carícias:

- Têm-nos chegado bastantes queixas, padre José Pedro. O arcebispado tem fechado os olhos na esperança de que o senhor conhecesse seu erro e se emendasse...

Olhou o padre com olhos duros. José Pedro baixou a cabeça.

- Não faz muito tempo a viúva Santos queixou-se. O senhor ajudou uma corja de moleques, numa praça, a vaiá-la. Melhor, incitou os moleques a que a vaiassem...Que tem a dizer, padre?

- Não é verdade, Cônego.

- O senhor quer dizer que a viúva mentiu?

Fuzilou o padre com os olhos. Mas desta vez José Pedro não baixou a cabeça, apenas repetiu:

- O que ela disse não é verdade...

- O senhor sabe que a viúva Santos é uma das melhores protetoras da religião na Bahia? Não sabe dos donativos...

- Eu posso lhe narrar o fato...

- Não me interrompa... No Seminário não lhe ensinaram a ser humilde e respeitoso com seus superiores? Se bem o senhor não tivesse sido um aluno dos mais brilhantes...

O padre José Pedro sabia daquilo. Não era preciso que lhe repetissem que fora um dos piores alunos do Seminário em matéria de estudos. Por isso mesmo tinha tanto medo de ter errado, de ter ofendido a Deus. O Cônego devia ter razão, era muito mais inteligente, estava muito mais próximo de Deus, que é a suprema inteligência.

O Cônego fez um gesto com a mão, como quem relegava para longe aquele incidente da viúva, e a sua voz se fez doce novamente:

- Porém agora há coisa muito mais grave. Por sua causa, padre, este arcebispado foi procurado pelas autoridades. O senhor sabe o que fez? Sabe?

O padre não tentou negar:

- Foi o caso do menino com alastrim?

- Um menino com varíola, sim senhor. E o senhor escondeu o caso das autoridades sanitárias...

O padre José Pedro tinha confiança na bondade de Deus. Muitas vezes pensara que Deus aprovava o que ele estava fazendo. Agora pensava isto também. Aquele pensamento tinha enchido seu coração de repente. Levantou o busto, fixou a vista no Cônego:

- O senhor sabe o que é o leprosário?

O Cônego não respondeu.

- Pois é raro o homem que volta de lá. Quanto mais uma criança... Mandar uma criança para lá é cometer um assassinato...

- Isso não é conosco - respondeu o Cônego com voz inexpressiva mas cheia de decisão. - Isto é com a Saúde Pública. Mas o nosso papel é respeitar as leis.

- Mesmo quando atentam contra a lei da bondade de Deus?

- Que sabe o senhor da bondade de Deus? Que grande inteligência tem para saber dos desígnios de Deus? O demônio da vaidade o dominou?

O padre José Pedro tentou explicar:

- Eu sei que sou um padre ignorante e indigno de servir ao Senhor. Mas estas crianças nunca tinham tido ninguém que olhasse por elas. Eu tive a intenção...

- A boa intenção não desculpa os maus atos... - cortou o Cônego com voz muito doce ao enunciar a sentença.

O padre José Pedro se sentiu novamente em dúvida. Mas elevou o pensamento a Deus, voltou parte da sua confiança:

- Teriam sido maus? Eram uns meninos que nunca tinham ouvido falar seriamente de Deus. Misturam Deus com os santos dos negros, não têm nenhuma ideia de religião.Eu quis ver se salvava aquelas almas...

- Já lhe disse que suas intenções foram boas, mas suas ações não corresponderam às intenções...