- Acaba doido... - pensou Boa-Vida.
Acendeu um cigarro. Andou para o trapiche. Só o Professor estava. Àquelas horas da tarde era difícil que estivesse alguém no trapiche. Professor viu quando ele entrou:
- Passa um cigarro, Boa-Vida.
Boa-Vida jogou um. Chegou no seu canto, fez uma trouxa com seus trapos. Professor ficou espiando aquele movimento:
- Tu vai embora?
Boa-Vida andou até ele com a trouxa debaixo do braço:
- Tu não diz a ninguém... Só a Bala...
- Pra onde tu vai?
O mulato riu:
- Pro lazareto...
Professor olhou os braços cheios de bolhas, o peito.
- Tu não vai, Boa-Vida...
- Por que, mano?
- Tu sabe... É buraco na certa...
- Tu pensa que eu vou ficar aqui pra pegar nos outros?
- A gente trata de tu...
- Morria tudo. Almiro tinha casa, tá certo. Eu não tenho ninguém.
Professor calou-se. Queria dizer muita coisa. O mulato estava na sua frente, a trouxa debaixo do braço cheio de bolha de bexiga. Boa Vida falou:
- Tu diz a Pedro Bala. Os outros não precisa.
Professor só soube dizer:
- Tu vai mesmo?
Boa-Vida fez que sim, saíram do trapiche. Boa-Vida olhou a cidade, fez um gesto com a mão. Era como um adeus. Boa-Vida era malandro e ninguém ama sua cidade como os malandros. Olhou o Professor:
- Quando tu fizer meu retrato... Tu ainda vai fazer?
- Vou, Boa-Vida... Vontade de dizer palavras carinhosas como a um irmão. - Não me faz cheio de bexiga, não...
Seu vulto desapareceu no areal. Professor ficou com as palavras presas, um nó na garganta. Mas também achava bonito Boa-Vida andar assim para a morte para não contaminar os outros. Os homens assim são os que têm uma estrela no lugar do coração. E quando morrem o coração fica no céu, diz o Querido-de-Deus. Boa-Vida era um menino, não era um homem. Mas já tinha uma estrela no lugar do coração. Já desapareceu o seu vulto. E então a certeza de que não mais verá seu amigo encheu o coração do Professor. A certeza de que o outro ia para a morte.
Nas macumbas em honra de Omolu, o povo negro, castigado com a bexiga, cantava:
"Cabono, aziela engoma!
Quero vê couro zoa!
Omolu vai pro sertão Bexiga vai espalha".
Omolu espalhara a bexiga na cidade. Era uma vingança contra a cidade dos ricos. Mas os ricos tinham a vacina, que sabia Omolu de vacinas? Era um pobre deus das florestas da África. Um deus dos negros pobres. Que podia saber de vacinas? Então a bexiga desceu e assolou o povo de Omolu. Tudo que Omolu pôde fazer foi transformar a bexiga de negra em alastrim, bexiga branca e tola. Assim mesmo morrera negro, morrera pobre. Mas Omolu dizia que não fora o alastrim que matara. Fora o lazareto. Omolu só queria com o alastrim marcar seus filhinhos negros. O lazareto é que os matava. Mas as macumbas pediam que ele levasse a bexiga da cidade, levasse para os ricos latifundiários do sertão. Eles tinham dinheiro, léguas e léguas de terra, mas não sabiam tampouco da vacina. O Omolu diz que vai pro sertão. E os negros, os ogãs, as filhas e pais de santo cantam:
"Ele é mesmo nosso pai e é quem pode nos ajudar..."
Omolu promete ir. Mas para que seus filhos negros não esqueçam avisa no seu cântico de despedida:
"Ora, adeus, ó meus filhinhos,
Que eu vou e torno a vortá..."
E numa noite que os atabaques batiam nas macumbas, numa noite de mistério da Bahia, Omolu pulou na máquina da Leste Brasileira e foi para o sertão de Juazeiro.A bexiga foi com ele.
Boa-Vida voltou magro, a roupa dançando no seu corpo. A cara agora estava toda picada. Os outros o olharam ainda com receio quando naquela noite ele entrou no trapiche. Mas Professor andou logo para ele:
- Ficou bom, mulato?
Boa-Vida sorriu. Vinham apertar a mão dele, Pedro Bala lhe deu um abraço:
- Mulato bom. Mulato batuta.
Até Sem-Pernas veio, João Grande ficou junto de Boa-Vida. 0 mulato olhou os amigos. Pediu um cigarro. Sua mão estava descarnada, o rosto ossudo. Ficou calado, olhando com amor o velho trapiche, os meninos, o cachorro que estava deitado no colo do Sem-Pernas.
Então João Grande perguntou:
- Como era o lazareto?
Boa-Vida se voltou rápido. Seu rosto tomou uma expressão amarga de desgosto. Demorou um pouco a responder. Depois as palavras saíram com dificuldade:
- Ninguém sabe dizer, não. É uma coisa por demais... Uma nojeira. A gente quando entra é igual um que entra no caixão... Olhou os outros, que estavam suspensos das suas palavras. Sua voz era amarga - Igual que entrasse pro caixão pra ir pro cemitério... Igual...
Não achou mais que dizer. Sem-Pernas perguntou entre dentes:
- Que mais?
- Nada. Nada. Não sei, não... Por Deus, não pergunte... - baixou a cabeça, que balançava para todos os lados. Sua voz saiu muito baixa, como que ainda amedrontada:- É mesmo que ir pro cemitério. Tudo já está morto.
Olhou como se pedisse que não lhe perguntassem mais nada. João Grande disse para os outros:
- A gente não devia perguntar nada...
Boa-Vida apoiou com um gesto da mão. Disse baixinho:
- Nada... É ruim demais...
Professor olhou o peito de Boa-Vida. Estava todo picado da varíola. Mas no lugar do coração Professor viu uma estrela.
Uma estrela no lugar do coração.
Capítulo 11 - Destino
Ocuparam a mesa do canto. O gato puxou o barulho. Mas nem Pedro Bala, nem João Grande, nem Professor, tampouco Boa-Vida se interessaram. Esperavam o Querido-de-Deus na Porta do Mar. As mesas estavam cheias. Muito tempo a Porta do Mar andara sem fregueses. A varíola não deixava. Agora que ela tinha ido embora, os homens comentavam as mortes. Alguém falou no lazareto. É uma desgraça ser pobre, disse um marítimo.
Numa mesa pediram cachaça. Houve um movimento de copo no balcão. Um velho então disse:
- Ninguém pode mudar o destino. É coisa feita lá em cima - apontava o céu.
Mas João de Adão falou de outra mesa:
- Um dia a gente muda o destino dos pobres...
Pedro Bala levantou a cabeça, Professor ouviu sorridente. Mas João Grande e Boa-Vida pareciam apoiar as palavras do velho, que repetiu:
- Ninguém pode mudar, não. Está escrito lá em cima.
- Um dia a gente muda... - disse Pedro Bala, e todos olharam para o menino.
- Que é que tu sabe, frangote? - perguntou o velho.
- É filho do Loiro, fala a voz do pai respondeu João Adão olhando com respeito. - O pai morreu pra mudar o destino da gente.
Olhou para todos. O velho calou e também olhava com respeito.
A confiança foi de novo chegando para todos. Lá fora um violão começou a tocar.
Segunda Parte - Noite da Grande Paz, da Grande Paz Dos Teus Olhos Capítulo 12 - Filha de Bexiguento
A música já recomeçara no morro. Os malandros voltavam a tocar violão, a cantar modinhas, a inventar sambas que depois vendiam aos sambistas célebres da cidade.Na venda de Deoclécio novamente ficava um grupo todas as tardes. Durante algum tempo tudo cessara no morro para dar lugar ao choro e lamentações das mulheres e crianças.Os homens passavam de cabeça baixa para as suas casas ou para o trabalho. E os caixões negros de adultos, os caixões brancos de virgens, os pequenos caixões de crianças desciam as ásperas ladeiras do morro para o cemitério distante. Isso quando não eram sacos que desciam com os variolosos ainda vivos que eram levados para o lazareto.A família chorava como choraria a um morto, pela certeza de que eles não voltariam jamais. Nem a música de um violão. Nem a voz cheia de um negro cortava então a tristeza do morro. Só a reza das sentinelas, o choro convulsivo das mulheres.