Assim estava o morro quando Estêvão foi levado para o lazareto. Não voltou, certa tarde Margarida soube que ele morrera por lá. Nesta tarde ela já estava com febre.Mas o alastrim parecia ser dos mais mansos no corpo da lavadeira e ela escondeu de todos a notícia, conseguiu não ser metida num saco. Aos poucos foi melhorando. Os dois filhos andavam pela casa, fazendo o que ela mandava. Zé Fuinha era um bocado inútil, ainda não sabia fazer nada, com seus seis anos.
Mas Dora tinha treze para quatorze anos, os seios já haviam começado a surgir sob o vestido, parecia uma mulherzinha, muito séria, a buscar os remédios para a mãe, a tratar dela. Margarida melhorou quando já os violões recomeçavam a tocar no morro, porque a epidemia de varíola tinha se acabado. A música voltou a dominar as noites do morro e Margarida, se bem ainda não estivesse completamente boa, foi ã casa de algumas de suas freguesas em busca de roupa. Voltou com a trouxa nas costas, se atirou para a fonte. Trabalhou o dia todo, sob o sol e a chuva que caiu pela tarde. No outro dia não voltou ao trabalho porque recaiu do alastrime a recaída é sempre terrível. Dois dias depois descia do morro o último caixão feito pela varíola. Dora não soluçava. Corriam as lágrimas pelo seu rosto, mas enquanto o caixão descia ela pensava era em Zé Fuinha, que pedia o que comer. O irmãozinho chorava de dor e de fome. Era muito menino para compreender que tinha ficado sem ninguém na imensidão da cidade.
Os vizinhos deram jantar aos órfãos nesta tarde. No outro dia pela manhã o árabe que era dono dos barracões do morro mandou derramar álcool no de Margarida para desinfetar. E logo o alugou, pois era um barracão bem situado, bem no alto da ladeira. E enquanto os vizinhos discutiam o problema dos órfãos, Dora tomou o irmão pela mão e desceu para a cidade. Não se despediu de ninguém, era como uma fuga. Zé Fuinha ia sem saber para onde, arrastado pela irmã. Dora marchava tranquila. Na cidade havia de encontrar quem lhes desse de comer, quem pelo menos tomasse conta de seu irmão. Ela arranjaria um emprego de copeira numa casa. Ainda era uma menina, mas havia muitas casas que preferiam mesmo uma menina porque o ordenado era menor. Sua mãe certa vez falara em a empregar de copeira na casa de uma freguesa. Dora sabia onde era e se dirigiu para lá. O morro, a música dos violões, o samba que um negro cantava ficaram para trás. Os pés descalços de Dora se queimam no asfalto ardente. Zé Fuinha vai alegre, vendo a cidade para ele desconhecida, os bondes que passam repleto, as marinetes que buzinam, a multidão que corta as ruas. Dora fora com Margarida certa vez à casa desta freguesa. É na Barra, elas tinham ido num bonde bagageiro, levando a trouxa de roupa lavada. A dona da casa fizera festa a Dora, perguntara se ela queria vir trabalhar ali. Margarida ficara de trazê-la quando ela estivesse mais crescida. Era para lá que Dora pensava ir. E perguntando a ume a outro tomou o caminho da Barra. A caminhada era grande, o sol no asfalto queimava seus pés sem sapato. Zé Fuinha começou a pedir de comer e a se queixar do cansaço. Dora o acalentou com promessas e seguiram. Mas no Campo Grande Zé Fuinha não pôde mais. A caminhada era demasiada para ele, para os seus seis anos. Então Dora entrou numa padaria, trocou os únicos quinhentos réis que possuía, comprou dois pães dormidos, deixou Zé Fuinha sentado num banco com os pães: - Tu come e me espera, tá ouvindo? Eu vou ali, volto já. Mas não vá sair daqui, senão você se perde...
Zé Fuinha prometeu com uma cara muito séria, dando dentadas nos pães duros. Ela o beijou e seguiu.
O guarda que a informou olhou para os seus seios que nasciam. 0 cabelo loiro dela, maltratado, voava com o vento. Sentia queimaduras nas solas dos pés e um cansaço no corpo todo. Mas seguiu. O número era 611. Quando chegou ao 53 parou um pouco para descansar e pensar o que diria à dona da casa. Depois retomou a caminhada. Agora a fome ajudava a magoar seu corpo, a fome terrível das crianças de 13 anos, uma fome que exige comida imediatamente. Dora tinha vontade de chorar, de se deixar cair na rua, sob o sol, e não fazer movimentos. Uma saudade dos pais mortos a invadiu. Mas reagiu contra tudo e continuou.
O 611 era uma casa grande, quase um palacete, com árvores na frente. Numa mangueira, um balanço onde uma menina da idade de Dora se divertia. Um rapazote dos seus 17 anos a balançava e riam os dois. Eram os filhos do dono da casa. Dora ficou a olhá-los com inveja uns minutos. Depois tocou a campainha. O rapaz olhou, mas continuou a balançar a irmã. Dora tocou novamente, a empregada veio. Ela explicou que queria falar com dona Laura, a patroa. A empregada a olhou com desconfiança. Mas o rapazola deixou de balançar a irmã e andou até o portão. Espiava os seios mal nascidos de Dora, os pedaços de coxas que apareciam sob o vestido. Perguntou: - O que é que você quer?
- Eu queria falar com dona Laura. Sou filha de Margarida, que foi lavadeira dela... Não vê que ela morreu...O rapaz não despregava os olhos dos seios de Dora. Era bonita a menina, de olhos grandes, cabelo muito loiro, neta de italiano com mulata. Margarida dizia que ela puxara ao avô, que também tinha cabelos muito loiros e um bigodão bem tratado. Dora baixou os olhos porque o rapaz não tirava os dele dos seus peitos.Ele também se desconcertou, falou para a empregada:
- Vá chamar mamãe...
- Sim, senhor.
O rapaz puxou um cigarro, acendeu. Jogou a fumaça para cima estendendo o beiço, deu mais uma espiada para os peitos de Dora:
- Você está procurando emprego?
- Tou, sim senhor.
O vento levantou um pouco o vestido dela. Ele teve pensamento canalhas ao ver o pedaço de coxa. Já se sonhava na cama, Dora trazendo o café pela manhã, a safadeza que se seguiria.
- Vou ver se mamãe arranja um lugar pra você...
Ela agradeceu. Mas estava um pouco assustada, se bem lhe escapasse muito da malícia dos olhares dele. Dona Laura chegou, os cabelos grisalhos, a filha atrás dela, espiando Dora com olhos compridos. Era sardenta, mas tinha certa graça.
Dora contou que a mãe tinha morrido:
- A senhora tinha me prometido um emprego...
- De que foi que Margarida morreu?
- De bexiga, sim senhora.
Dora não sabia que dizendo aquilo tinha perdido a possibilidade do emprego.
- De varíola?
A mocinha se afastou receosa. Até o rapaz se desviou um pouco, pensou nos seios pequenos de Dora marcados de varíola. Cuspiu com nojo. Dona Laura tomou um tom triste:
- É que já tomei outra empregada. Agora não tenho necessidade...
Dora pensou em Zé Fuinha:
- A senhora não tem precisão de um menino pequeno pra faz compra, recados, estas coisas? É meu irmão...
- Não, minha filha, não tenho. - Não sabe de ninguém?
- Não. Se soubesse recomendaria você...
Queria acabar a conversa. Voltou-se para o filho:
- Você tem dois mil-réis aí, Emanuel?
- Pra que, mamãe?
- Me dê.
O rapaz deu, ela pôs em cima da grade. Tinha medo de tocar em Dora, queria que fosse dali, antes de contagiar a casa.
- Leve isso para você. Que Deus lhe ajude...
Dora voltou a descer a rua. O rapaz ainda espiou as nádegas que apareciam redondas sob o vestido apertado. Mas a voz de dona Laura o interrompeu. Ela falava para a empregada:
- Dos Reis, passe um pano com álcool no portão, onde esta menina pegou. Não é bom brincar com varíola...
O rapaz voltou a balançar a irmã sob as mangueiras. Mas de vez em quando suspirava para si mesmo: tinha uns peitos muito bons...
Zé Fuinha não estava no banco. Dora levou um susto. Era capaz que o irmão tivesse saído andando pela cidade e se perdesse. E como ela o iria encontrar, ela que tão pouco conhecia a cidade? Demais um grande cansaço a invadia, um desânimo, saudade da mãe morta, vontade de chorar. Os pés doíam e ela tinha fome. Pensou em comprar pão agora possuía dois mil e quatrocentos, mas em vez disto saiu em busca do irmão. Foi encontrá-lo embaixo das árvores do jardim comendo ameixas verdes. Dora deu-lhe uma pancada na mão: