- Tu não sabe que isso faz dor de barriga?
- Tou com fome...
Ela comprou pão, comeram. A tarde toda foi uma caminhada de um lado para outro à procura de emprego. Em todas as casas diziam que não, o medo da varíola era maior que qualquer bondade. No começo da noite Zé Fuinha não se agüentava mais de cansado. Dora estava triste e pensava em voltar ao morro. Ia ser uma carga para os vizinhos pobres. Não queria voltar. Do morro sua mãe tinha saído num caixão, seu pai metido num saco. Mais uma vez deixou Zé Fuinha sozinho num jardim para ir comprar o que comer numa padaria, antes que fechasse. Gastou os últimos níqueis. As luzes se acenderam e ela achou a princípio muito bonito. Mas logo depois sentiu que a cidade era sua inimiga, que apenas queimara os seus pés e a cansara. Aquelas casas bonitas não a quiseram. Voltou curvada, afastando com as costas das mãos as lágrimas. E novamente não encontrou Zé Fuinha. Depois de andar em volta do jardim foi dar com o irmão, que espiava um jogo de gude entre dois garotos: um negro forte e um magrelo branco. Dora sentou num banco, chamou o irmão.
Os garotos que jogavam se levantaram também. Ela desembrulhou os pães, deu um a Zé Fuinha. Os garotos a olhavam. O preto estava com fome, ela bem viu. Ofereceu do pão a eles. Ficaram os quatro comendo o pão dormido era mais barato em silêncio. Quando terminaram, o preto bateu as mãos uma na outra, falou:
- Teu irmão disse que a mãe de você morreu de bexiga...
- Papai também...
- Lá também morreu um...
- Teu pai?
- Não. Foi Almiro, um do grupo.
O branco magrelo, que tinha estado calado, perguntou:
- Você arranjou onde trabalhar?
- Ninguém quer filha de bexiguento...
Agora chorava. Zé Fuinha brincava no chão com as bolas que os outros tinham deixado perto das árvores. O preto coçava a cabeça. 0 magrelo olhou para ele, depois para Dora:
- Tu tem onde dormir?
- Não.
O magrelo falou para o negro:
- A gente leva ela pro trapiche...
- Uma menina... O que é que Bala vai dizer?
- Tá chorando disse o magrelo em voz muito baixa.
O negro olhou. Evidentemente estava atarantado. O branco coçou o pescoço, espantando uma mosca. Botou a mão no ombro de Dora muito devagarinho, como se tivesse medo de a tocar:
- Vem com a gente. A gente dorme num trapiche...
O preto fez esforço para sorrir: - Não é um palacete, mas é melhor que a rua...
Andaram. João Grande e Professor iam na frente. Ambos tinham vontade de conversar com Dora, mas nenhum sabia o que dizer, não tinham se visto ainda num apuro assim.A luz das lâmpadas batia nos cabelos loiros dela. O preto disse:
- É uma lindeza.
- Batuta fez Professor.
Mas não olhavam nem os seios, nem as coxas. Olhavam o cabelo loiro batido pela luz das lâmpadas elétricas.
No areal Zé Fuinha não pôde mais ir andando. O negro João Grande pegou a criança apesar de ser também criança... e a botou nas costas. Professor ia junto de Dora, mas estavam calados na noite.
Entraram no trapiche meio desconfiados. João Grande arriou Zé Fuinha no chão, ficou parado, esperando que o Professor e Dora entrassem. Foram todos para o canto do Professor, que acendeu a vela. Os outros espiavam para o canto com surpresa. O cachorro do Sem-Pernas latiu.
- Gente nova... - murmurou o Gato, que ia sair.
Gato andou até onde eles estavam:
- Quem é, Professor?
- A mãe e o pai morreu de bexiga. Tavam na rua, sem ter onde dormir. Gato olhou para Dora ensaiando seu melhor sorriso. Fez uma espécie de saudação tinha visto num cinema um galã fazendo com o corpo, ensaiou uma frase que tinha ouvido certa vez:
- Boas-vindas, madame...
Não se lembrou do resto, ficou meio encabulado, foi embora ver Dalva. Mas os demais já se aproximavam. Sem-Pernas e Boa-Vida vinham na frente. Dora olhava assustada.Zé Fuinha dormia de cansaço. João Grande se pôs na frente de Dora. A luz da vela iluminava o cabelo loiro da menina, de quando em vez pousava nos seios. se levantou, encostou-se na parede. Agora a lua aparecia pelos buracos do teto.
Boa-Vida estava diante deles. Sem-Pernas vinha coxeando, e os outros logo atrás, os olhos estirados para Dora. Boa-Vida falou:
- Quem é essa lasca?
Professor se adiantou:
- Tava com fome. Ela e o irmão. A bexiga matou o pai e a mãe.
Boa-Vida riu um riso largo. Empinou o corpo:
- É um peixão...
Sem-Pernas riu seu riso burlão, apontou os outros:
- Tá tudo como urubu em cima da carniça...
Dora se chegou para junto de Zé Fuinha, que acordara e tremia de medo. Uma voz disse entre os meninos:
- Professor, tu tá pensando que a comida é só pra tu e pra João Grande? Deixa pra nós também...
Outro gritou:
- Já tou com o ferro em brasa...
Muitos riram. Um se adiantou, mostrou o sexo a João Grande - Vê como a bichinha está, Grande. Doidinha...
João Grande e se pôs na frente de Dora. Não dizia nada, mas puxou o punhal. O Sem-Pernas gritou:
- Tu assim não arranja nada. Ela tem que ser pra todos.
Professor replicou:
- Não tão vendo que é uma menina...
- Já tem peito! - gritou uma voz.
Volta Seca saiu de entre o grupo. Trazia os olhos muito excitado um riso no rosto sombrio:
- Lampião também não respeita cara. Dá ela pra gente Grande...
Sabiam que Professor era fraco, não agüentava pancada. Estava doidamente excitados, mas ainda temiam João Grande, que segurava o punhal. Volta Seca se via como no meio do grupo de Lampião, pronto para deflorar junto com todos uma filha de fazendeiro. A vela iluminava os cabelos loiros de Dora. Ia um pavor pelo rosto dela.
João Grande não dizia nada, mas segurava o punhal na mão. Professor abriu a navalha, ficou junto dele. Então Volta Seca também puxou do punhal, começou a avançar.Os outros vinham por detrás dele, o cachorro latia. Boa-Vida falou mais uma vez:
- Desaparta, Grande. É melhor...
Professor pensava que se o Gato estivesse ali, estaria do lado deles, porque o Gato já, tinha mulher. Mas o Gato já tinha saído.
Dora via o grupo avançar. O medo foi vencendo o desânimo e o cansaço em que estava. Zé Fuinha chorava. Dora não tirava os olhos de Volta Seca. A cara sombria do mulato estava aberta em desejo, um riso nervoso a sacudia. Viu também os sinais da varíola no rosto de Boa-Vida quando este passou em frente da vela, e então se lembrou da mãe morta. Um soluço a sacudiu e deteve um momento os meninos. Professor disse:
- Não vê que ela tá chorando.
Eles pararam um momento. Mas Volta Seca falou:
- E nós com isso? A babaca é a mesma...
Continuaram avançando. Iam vagarosamente, os olhos fixos ora em Dora, ora no punhal que João Grande tinha na mão. De repente se apressaram, chegaram muito mais perto. João Grande falou pela primeira vez:
- Furo o primeiro...
Boa-Vida riu, Volta Seca manejou o punhal. Zé Fuinha chorava, Dora o olhou com os olhos apavorados. Se abraçou nele, viu João Grande derrubar Boa-Vida. A voz de Pedro Bala, que entrava, fez com que parassem:
- Que diabo é isso?
Professor levantou-se. Volta Seca o soltou, já o havia cortado no braço. Boa-Vida ficou deitado como estava, um talho no rosto. João Grande continuou em guarda na frente de Dora. Pedro Bala se adiantou:
- Que é isso?
Boa-Vida falou do chão mesmo:
Estes frescos arranjaram uma comida e quer que seja para ele só. A gente também tem direito...
- Também. Eu pelo menos quero trepar hoje... - esganiçou Sem-Pernas.