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Pedro Bala olhou para Dora. Viu os peitos, o cabelo loiro.

- Tão com o direito... - falou. - Arreda, João Grande.

O negro olhou Pedro Bala espantado. O grupo avançava novamente, agora chefiado por Pedro Bala. João Grande estendeu os braços, gritou:

- Bala, eu como o primeiro que chegar aqui.

Pedro Bala adiantou mais um passo:

- Sai, Grande.

- Tu não tá vendo que é uma menina? Tu não tá vendo?

Pedro Bala parou, o grupo parou atrás dele. Agora Pedro Bala olhava Dora com outros olhos. Via o terror no rosto dela, as lágrimas que caíam dos olhos. Ouviu o choro de Zé Fuinha. João Grande falava:

- Eu sempre tive contigo, Bala. Sou teu amigo, mas ela é uma menina, fui eu e Professor que trouxe ela. Eu sou teu amigo, mas se tu vier eu te mato. É uma menina, ninguém faz mal a ela...

- A gente te derruba e depois... - disse Volta Seca.

- Cala a boca gritou Pedro Bala.

João Grande continuou:

- O pai dela, a mãe dela morreu de bexiga. A gente encontrou ela, não tinha onde dormir, a gente trouxe ela. Não é uma puta, é uma menina, não vê que é uma menina? Ninguém toca nela, Bala.

Pedro Bala disse baixinho:

- É uma menina...

Pulou para o lado de João Grande e de Professor.

- Tu é um negro bom. Tu tá com o direito... - voltou-se para os outros. - Quem quiser vir, venha...

- Tu não pode fazer isso, Bala... - e Boa-Vida passava a mão no talho. - Tu agora quer comer ela só com o Grande e Professor...

- Juro que não quem comer ela, nem eles quer. É uma menina. Mas ninguém toca nela. Quem quiser que venha...

Os menores e mais medrosos foram se afastando. Boa-Vida se levantou, foi para seu canto, limpando o sangue. Volta Seca falou para Pedro Bala devagar:

- Eu não vou não é de medo. É que tu disse que é uma menina.

Pedro Bala se aproximou de Dora:

- Tem medo, não. Ninguém toca em você.

Ela saiu do seu canto, arrancou um pedaço da fralda, começou a ver a ferida do Professor. Depois marchou para onde estava Boa-Vida que se encolheu todo, molhou a ferida do malandro, botou um pano em cima. Todo o temor, todo o cansaço tinham desaparecido. Porque confiava em Pedro Bala. Depois perguntou a Volta-Seca:

- Também tá ferido?

- Não... - fez o mulato sem compreender. E fugiu para seu canto. Parecia ter medo de Dora.

Sem-Pernas espiava. O cachorro saiu do colo dele, veio lamber os pés de Dora. Ela o acarinhou, perguntou ao Sem-Pernas:

- É teu?

- É, sim. Mas pode ficar com ele.

Ela sorriu. Pedro Bala andou ao léu no trapiche. Depois disse para todos:

- Amanhã ela vai embora. Não quero menina aqui.

- Não - disse Dora. - Eu fico, ajudo vocês. Eu sei cozinhar, coser, lavar roupa.

- Por mim pode ficar falou Volta Seca.

Dora olhou Pedro Bala:

- Tu disse que ninguém me fazia mal?..

Pedro Bala olhou os cabelos loiros. A lua entrava pelo trapiche.

Capítulo 13 - Dora, Mãe

O gato veio gingando o corpo naquele seu caminhar característico. Andara procurando enfiar a linha na agulha uma imensidade de tempo. Dora fizera Zé Fuinha dormir, agora se preparava para ouvir Professor ler aquela história tão bonita que estava no livro de capa azul. O Gato veio gingando o corpo, se aproximou devagar:

- Dora...

- Que é, Gato?

- Tu quer fazer uma coisa?

Mirava a agulha e a linha que tinha na mão. Parecia estar diante de um problema grave. Não sabia como se arranjar. Professor parou a leitura, Gato mudou de conversa:

- Tu ainda fica cego de tanto lê, Professor... Se ainda fosse luz elétrica... - olhou Dora sem se resolver.

- Que é, Gato?

- Esse diabo desta linha... Nunca vi coisa mais difícil. Meter isso no rabo desta agulha...

- Dê cá...

Enfiou a linha, deu um nó numa das pontas. Gato disse para Professor:

- Só mulher é que sabe fazer esse troço...

Estendeu a mão para receber a agulha, mas Dora não entregou.

Perguntou o que é que Gato tinha que coser. Gato mostrou o paletó roto no bolso. Era aquela roupa de casimira que fora do Sem-Pernas quando ele andara feito menino rico numa casa da Graça:

- É uma roupa porreta! - fez o Gato.

- Boa mesmo apoiou Dora. - Tira o casaco.

Professor e Gato ficaram vendo ela coser. Em verdade não era uma maravilha de costura, mas eles nunca tinham tido ninguém que remendasse suas roupas. E somente Gato e Pirulito tinham costume de remendar eles mesmos as suas. Gato porque era metido a elegante e tinha uma amante, Pirulito porque gostava de andar limpo. Os outros deixavam que os farrapos que arranjavam se esfarrapassem ainda mais, até se tornarem trapos inúteis. Então mendigavam ou furtavam outra calça e outro paletó. Dora acabou o serviço:

- Tem mais?

Gato alisou o cabelo cheio de brilhantina:

- As costas da camisa...

Virou-se. A camisa estava rasgada de cima a baixo. Dora mandou que ele sentasse, começou a coser no corpo dele mesmo. Quando os dedos dela tocaram pela primeira vez nas costas de Gato, ele sentiu um arrepio. Como quando Dalva passava as unhas crescidas e tratadas, arranhando suas costas e dizendo:

- A gatinha arranha o gatinho...

Mas Dalva não cosia suas roupas, talvez nem soubesse enfiar uma linha no fundo de uma agulha. Gostava era de se bater com ele na cama, arranhar suas costas, mas de propósito, pra o arrepiar e o excitar, para que o amor se fizesse ainda melhor. E Dora, não. Não era de propósito. A mão dela unhas maltratadas e sujas, roídas a dente não queria excitar, nem arrepiar. Passava como a mão de uma mãe que remendava camisas do filho. A mãe do Gato morrera cedo. Era uma mulher frágil e bonita.Também tinha as mãos maltratadas, que esposa de operário não tem manicura. E era dela também aquele gesto de remendar as camisas de Gato, mesmo nas costas de Gato.A mão de Dora o toca de novo. Agora a sensação é diferente. Não é mais um arrepio de desejo. É aquela sensação de carinho bom, de segurança que lhe davam as mãos de sua mãe. Dora está por detrás dele, ele não vê. Imagina então que é sua mãe que voltou. Gato está pequenino de novo, vestido com um camisolão de bulgariana e nas brincadeiras pelas ladeiras do morro o rompe todo. E sua mãe vem, faz com que ele se sente na sua frente e suas mãos ágeis manejam a agulha, de quando em vez o tocam e lhe dão aquela sensação de felicidade absoluta. Nenhum desejo. Somente felicidade. Ela voltou, remenda as camisas do Gato. Uma vontade de deitar no colo de Dora e deixar que ela cante para ele dormir, como quando era pequenino. Se recorda que ainda uma criança. Mas só na idade, porque no mais é igual a um homem furtando para viver, dormindo todas as noites com uma mulher da vida, tomando dinheiro dela. Mas nesta noite é totalmente criança esquece Dalva, suas mãos que o arranham, lábios que prendem os seus em beijos longos, sexo que o absorve. Esquece sua vida de pequeno batedor de carteiras, de dono de um baralho marcado, jogado desonesto. Esquece tudo, é apenas um menino de quatorze anos com uma mãezinha que remenda suas camisas. Vontade de que ela cante para ele dormir... Uma daquelas cantigas de ninar que falam em bicho-papão. Dora morde a linha, se inclina para ele. Os cabelos loiro dela tocam no ombro do Gato. Mas ele não tem outro desejo senão que ela continue a ser sua mãezinha. Sua felicidade naquele momento é quase absurda. É como se não houvesse existido toda a sua vida depois da morte da sua mãe. É como se tivesse se conservado um criança igual a todas. Porque nesta noite sua mãe voltou. Por isso a inconsciente carícia dos cabelos loiros de Dora não excita seu desejo.

Mas aumenta sua felicidade. E a voz dela que diz: tá pronto, Gato, soa aos seus ouvidos direitinho a voz doce e musical de sua mãe que cantava, a cabeça do Gato recostada no seu colo, cantigas de ninar.