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Levanta, olha Dora com olhos agradecidos:

- Você é a mãezinha da gente, agora... - mas fica encabulada do que diz, pensa que Dora não compreenderá mesmo porque ela esta rindo com seu rosto sério de quase mulherzinha. Mas Professor compreende, e Gato, na frente de Dora, falando numa voz feliz, mas sem desejo, chamando-a de mãe, e ela sorrindo com seu ar maternal de quase mulherzinha, fica gravado na cabeça de Professor como um quadro.

Gato joga o paletó nas costas e sai com seu passo gingado. Sente que há qualquer coisa de novo no trapiche: eles encontraram mãe, carinho e cuidados de mãe. Dalva o estranha nesta noite:

- Que foi que Gatinho teve? Que foi?

Mas ele guarda seu segredo. É uma coisa tão grande demais encontrar na terra uma mãe que já morreu. Dalva não o entenderia.

Quando Professor estava começando a história, João Grande chegou e sentou-se ao lado deles. A noite era chuvosa. Na história que Professor lia, a noite era chuvosa também e o navio estava em grande perigo. Os marinheiros apanhavam de chicote, o capitão era um malvado. O barco a vela parecia soçobrar a cada momento, o chicote dos oficiais caía sobre as costas nuas dos marinheiros. João Grande tinha uma expressão de dor no rosto. Volta Seca chegou com um jornal, mas não interrompeu a história, ficou ouvindo. Agora o marinheiro John apanhava chibatadas porque escorregara e caíra no meio do temporal. Volta Seca interrompeu: - Se Lampião tivesse aí, já tinha comido esse capitão no fuzil...

Foi o que fez o marinheiro James, um homenzarrão. Se atirou em cima do capitão, a revolta estalou no buque. Lá fora chovia. Chovia na história também, era a história de um temporal e de uma revolta. Um dos oficiais ficou do lado dos marinheiros.

- É do balacobaco... - disse João Grande.

Amavam o heroísmo. Volta Seca espiou Dora. Os olhos dela brilhavam, ela amava o heroísmo também. Isso agradou ao sertanejo. Depois o marinheiro James sustentou uma luta feroz. Volta Seca assoviou como um passarinho de tanto contentamento. Dora riu também, satisfeita. Riram os dois juntos, logo foi uma gargalhada dos quatro, como era costume dos Capitães da Areia. Gargalharam alguns minutos, outros se aproximaram, a tempo de ouvir o resto da história.

Olhavam o rosto sério de Dora, rosto de uma quase mulherzinha que os fitava com carinho de mãe. Sorriam e, quando o marinheiro James jogou o capitão do navio num barco salva-vidas e o chamou de cobra sem veneno, eles todos gargalharam junto com Dora, e a olharam com amor. Como crianças olham a mãe muito amada. Quando a história acabou, eles voltaram para os seus cantos entre comentários:

- Porreta...

- Macho bamba...

- Também era um prensa...

- O capitão fez uma cara, hein?

Volta Seca espichou o jornal para Professor Dora olhou o mulato, ele sorriu meio confuso.

- É que traz notícias de Lampião... - seu rosto sombrio clareava. - Tu sabe que Lampião é meu padrim?

- Padrinho?

- Pois é... Foi minha mãe que tomou, porque Lampião é um macho de verdade, não respeita cara... Minha mãe era uma mulher valente, uma mulher capaz de agüentar um fuzil. Um dia fez correr dois soldados que se fizeram de besta. Era um mulherão... Valia um homem.

Dora ouvia encantada. Seu rosto sério fitava com a maior simpatia o rosto sombrio do mulato. Volta Seca ficou calado, mas num jeito de quem queria dizer alguma coisa. Por fim falou.

- Tu também é valente... Sabe? Minha mãe era um mulherão destas grandes. Era mulata, não tinha cabelo loiro, tinha uma carapinha danada... Não era mais menina também, podia ser tua avó... Mas tu parece com ela...

Olhou Dora, mas baixou a cabeça:

- Parece mentira, mas tu me lembra ela. Parece mentira, mas tu parece com ela...

Professor olhou com seus olhos de míope. Volta Seca quase gritava, seu rosto sombrio tinha a alegria de uma descoberta. Também ele descobriu sua mãe, pensou Professor.Dora estava séria, mas sei olhar era carinhoso. Volta Seca riu, ela riu, virou logo gargalhada. Mas Professor não os acompanhou na gargalhada. Começou a ler muito rápido o relato do jornal.

Lampião fora pegado de surpresa ao entrar numa vila. O chofer de um caminhão que o vira na estrada com o grupo tocara para a vila e avisara. Dera tempo de pedirem reforços de vilas próximas e a coluna volante também veio. Quando Lampião entrou na vila encontrou foi bala muita pela frente, bala que ele não esperava. O tiroteio foi grande, Lampião só pôde mesmo abrir para a caatinga, que é sua casa. Um dos homens do grupo ficou estirado com um balaço no peito. Cortaram a cabeça dele, que foi enviada para a Bahia em triunfo. Vinha a fotografia no jornal. A boca aberta, os olhos furados, um homem segurando pela carapinha rala. Tinham cortado o pescoço a facão.

Dora comentou:

- Coitado dele... Que judiaria!

Volta Seca olhou agradecido. Seus olhos estavam injetados, seu rosto todavia mais sombrio. Dolorosamente sombrio.

- Filho de uma égua... - disse baixo. - Filho de uma égua de chofer... Se um dia eu te pegar...

A notícia adiantava que Lampião devia ter outros homens feridos, pois a retirada do grupo fora por demais rápida. Volta Seca falou em surdina. Era como se falasse para si mesmo...

- Já tá em tempo de eu ir...

- Pra onde? - perguntou Dora.

- Pra junto de meu padrim. Ele tá precisando de mim...

Ela o olhou com tristeza:

- Tu vai mesmo, Volta Seca?

- Vou, sim.

- E se a polícia te matar, cortar tua cabeça?

- Juro que eu eles não topa vivo. Vou com um, mas eu eles não topa vivo... Não tem medo, não...

Afirmava à sua mãe, forte e valente mulata sertaneja, capaz de brigar com soldados, comadre de Lampião, amásia de cangaceiro, que podia confiar nele, que não o pegariam vivo, que lutaria até morrer... Dora ouvia com orgulho.

Professor apertou os olhos e viu também, em lugar de Dora, uma sertaneja forte, defendendo seu pedaço de terra contra os coronéis, com a ajuda amiga dos cangaceiros.Viu a mãe de Volta Seca. E era o que o mulato via. Os cabelos loiros eram carapinha rala, os olhos doces eram os olhos achinesados da sertaneja, o rosto grave era o rosto sombrio da camponesa explorada. E o sorriso era o mesmo sorriso de orgulho de mãe para filho.

Pirulito a viu chegar com desconfiança. Para ele Dora era o pecado. Havia bastante tempo que ele desistira das negrinhas do areal e da quentura dos corpos se embolando no areal. Se despia aos poucos dos seus pecados para aparecer puro aos olhos de Deus e poder merecer a graça de se vestir com as vestes dos sacerdotes. Pensava mesmo em arranjar um lugar de vendedor de jornais para fugir do pecado diário do furto.

Olhava Dora com receio: a mulher era o pecado. Em verdade ela era apenas uma criança, uma criança abandonada como eles. Não ria como as negrinhas do areal um riso insolente de convite, um riso de dentes apertados pelo desejo. Seu rosto era sério, parecia o rosto de uma mulherzinha muito digna. Mas os pequenos seios que nasciam se empinavam no vestido, o pedaço de coxa que aparecia era branco e redondo. Pirulito tinha medo. Não tanto da tentação de Dora. Ela não parecia das que tentavam, era uma criança, era muito cedo para isto. Mas tinha medo da tentação que vinha dentro dele, que o demônio punha dentro dele. E procurava rezar em voz baixa enquanto ela se aproximava.

Dora ficou olhando os quadros de santo. Professor parou atrás dela, olhava também. Havia flores sob a imagem do Menino Deus que Pirulito furtara um dia. Dora chegou mais perto:

- É uma beleza...

O medo começou a desaparecer do coração do Pirulito. Ela se interessava pelos seus santos, santos para os quais ninguém ligava no trapiche. Dora perguntou:

- É tudo teu?

Pirulito fez que sim com a cabeça e sorriu. Se adiantou, mostrou tudo que possuía. Os quadros, o catecismo, o terço, tudo. Ela olhava com satisfação. Sorria também enquanto Professor a espiava com os olhos míopes. Pirulito contava a história de Santo Antônio, que tinha estado em dois lugares ao mesmo tempo. Isso para salvar seu pai da forca, para a qual fora condenado injustamente. Contava do mesmo modo como Professor lia histórias heroicas de marinheiros corajoso e revoltosos. Dora escutava com a mesma atenção e a mesma simpatia. Conversavam os dois, Professor calado, ouvindo. Pirulito contou coisas da sua religião, milagres de santos, a bondade do padre José Pedro: - Quando tu conhecer ele, vai gostar...