Ela disse que com certeza. Ele já havia esquecido que ela podia trazer a tentação nos seios de menina, nas coxas gordas, na cabeleira loira, agora falava como a uma mulher mais velha que o ouvia com carinho. Como a uma mãe. Só então compreendeu. Porque naquele momento lhe veio uma vontade de contar a ela que queria ser sacerdote, que queria seguir aquela vocação, que sentia o chamado de Deus. Só à sua mãe teria coragem de contar isso. E ela está na sua frente. Ele fala:
- Tu sabe que eu quero ser padre?
- Que bom... - fez ela.
O rosto de Pirulito se iluminou. Olhou para Dora, falou com a voz exaltada:
- Tu pensa que eu mereço? Deus é bom, mas também sabe castigar...
- Por quê? - havia espanto na pergunta de Dora.
- Tu não vê que a vida da gente é cheia de pecado?.. Todo dia...
- A culpa não é da gente... - esclareceu Dora. - A gente não tem ninguém.
Mas agora Pirulito tinha a ela. A sua mãe. Riu satisfeito:
- Padre José Pedro também já disse isso. É capaz...
Riu mais, ela sorriu também animando.
- ...é capaz de que um dia eu seja padre.
- Tu vai ser, sim.
- Tu quer esse Deus Menino pra tu? - perguntou ele de repente.
Era como um filho que levasse parte da sua guloseima para sua mãe, que lhe dera o níquel para que comprasse.
E Dora aceitou, como uma mãe aceita parte da guloseima do filho querido para que este fique satisfeito.
Professor via a mãe de Pirulito, que não sabia como era, como fora. Mas a via ali no lugar de Dora. Sentiu inveja da felicidade de Pirulito.
Encontraram Pedro Bala estendido na areia. O chefe dos Capitães da Areia não entrara para o trapiche nesta noite. Ficara espiando a lua, deitado na quentura boa da areia. A chuva tinha cessado e vento que corna agora era morno. Professor deitou também, Dora sentou entre os dois. Pedro Bala a espiou pelo canto dos olhos, puxou o boné mais para a cara. Dora disse voltada para ele:
- Tu ontem foi bom comigo e meu irmão...
- Tu devia ir embora... - respondeu Bala.
Ela não disse nada, mas ficou triste. Professor então falou.
- Não, Bala. É como uma mãe... Como uma mãe, sim. Pra todos...
Repetia:
- É como uma mãe... Como uma mãe...
Pedro Bala olhou os dois. Suspendeu o boné, sentou na areia. Mas Dora o olhava com carinho. Para ele... Para ele era tudo: esposa, irmã e mãe. Sorriu confuso para Dora:
- Pensei que fosse ser uma tentação pra todos...
Ela fez que não, ele continuou:
- Depois podiam aproveitar uma hora que a gente não estava...
Riram. Professor repetiu mais uma vez:
- Não. É como uma mãezinha...
- Tu pode ficar-disse Pedro Bala, e Dora sorriu para ele, era o seu herói, uma figura que ela nunca tinha imaginado, mas que um dia haveria de imaginar. Amava-o como a um filho sem carinho, um irmão corajoso, um amado tão belo como não havia outro.
Mas Professor viu os sorrisos dos dois. E disse ainda uma vez com voz sombria:
- É como mãe!
Capítulo 14 - Dora, Irmã e Noiva
Como o vestido dificultava seus movimentos e como ela queria ser totalmente um dos Capitães da Areia, o trocou por umas calças que deram a Brandão numa casa da cidade alta. As calças tinham ficado enormes para o negrinho, ele então as ofereceu a Dora. Também estavam grandes para ela, teve que as cortar nas pernas para que dessem. Amarrou com cordão, seguindo o exemplo de todos, o vestido servia de blusa. Se não fosse a cabeleira loira e os seios nascentes, todos a poderiam tomar como um menino, um dos Capitães da Areia.
No dia em que, vestida como um garoto, ela apareceu na frente de Pedro Bala, o menino começou a rir. Chegou a se enrolar no chão de tanto rir. Por fim conseguiu dizer:
- Tu tá gozada...
Ela ficou triste, Pedro Bala parou de rir.
- Não tá direito que vocês me dê de comer todo dia. Agora eu tomo parte no que vocês fizer.
O assombro dele não teve limites:
- Tu quer dizer...
Ela o olhava calma, esperando que ele concluísse a frase.
- ...que vai andar com a gente pela rua, batendo coisas...
- Isso mesmo - sua voz estava cheia de resolução.
- Tu endoidou...
Dizia com voz soturna, porque, para ele, ela também não era mãe. Também para o Professor ela era a Amada.
- Não sei por quê.
- Tu não tá vendo que tu não pode? Que isso não é coisa pra menina. Isso é coisa pra homem.
- Como se vocês fosse tudo uns homão. É tudo uns menino.
Pedro Bala procurou o que responder:
- Mas a gente veste calça, não é saia.
- Eu também e mostrava as calças.
De momento ele não encontrou nada que dizer. Olhou para ela e pensativo, já não tinha vontade de rir. Depois de algum tempo falou:
- Se a polícia pegar a gente não tem nada. Mas se pegar tu?
- É igual.
- Te metem no orfanato. Tu nem sabe o que é...
- Tem nada, não. Eu agora vou com vocês.
Ele encolheu os ombros num gesto de quem não tinha nada com aquilo. Havia avisado. Mas ela bem sabia que ele estava preocupado.
Por isso ainda disse:
- Tu vai ver como eu vou ser igual a qualquer um...
- Tu já viu uma mulher fazer o que um homem faz? Tu não agüenta um empurrão...
- Posso fazer outras coisa.
Pedro Bala se conformou. No fundo gostava da atitude dela, se bem tivesse medo dos resultados.
Andava com eles pelas ruas, igual a um dos Capitães da Areia. Já não achava a cidade inimiga. Agora a amava também, aprendi a andar nos becos, nas ladeiras, a pongar nos bondes, nos automóveis em disparada. Era ágil como o mais ágil. Andava sempre com Pedro Bala, João Grande e Professor. João Grande não a largava, era como uma sombra de Dora, e se babava de satisfação quando ela o chamava com sua voz amiga de meu irmão. O negro a seguia como um cachorro e se dedicara totalmente a ela. Vivia num assombro das qualidades de Dora. Quase a achava tão valente como Pedro Bala. Dizia o Professor num espanto: - É valente como um homem...
Professor preferia que não fosse assim. Sonhava com um olhar de carinho dos olhos da Dora. Mas não daquele carinho maternal que ela tinha para os menores e para os mais tristes, Volta Seca, Pirulito. Tampouco um olhar fraternal, como os que ela lançava a João Grande, a Sem-Pernas, a Gato, a ele mesmo. Queria um daqueles olhares plenos de amor que ela lançava a Pedro Bala quando o via na carreira, fugindo da polícia ou de um homem que dizia na porta de uma loja:
- Ladrão! Ladrão! Me furtaram...
Daqueles olhares ela só tinha para Pedro Bala, e este nem reparava. Professor ouve os elogios de João Grande mas não sorri. Pedro Bala naquela noite chegou no trapiche com um olho inchado e o lábio roxo, sangrando. Topara com Ezequiel, chefe de outro grupo de meninos mendigos e ladrões, grupo muito menor que o dos Capitães da Areia e muito mais sem ordem. Ezequiel vinha com uns três do grupo, inclusive um que fora expulso dos Capitães da Areia por ter sido pegado furtando um companheiro. Pedro Bala tinha ido deixar Dora e Zé Fuinha no pé da ladeira do Taboão para que eles fossem para o trapiche. João Grande tinha um serviço a fazer e não pudera ir com Dora. Pedro Bala pensou em ir com ela, em não deixá-la sozinha no areal. Mas como ainda não caíra a noite, não havia perigo de um negro dar em cima dela. Demais ele tinha que ir receber uns cobres da mão de Gonzales do 14, dinheiro que era devido a uma batida que o grupo fizera nuns objetos de ouro de um árabe rico.