- Desmaiou - diz o investigador.
- Deixe ele por minha conta - explica o diretor do reformatório. - Eu levo ele pro reformatório, lá ele abre a boca. Garanto. E eu dou o aviso a vocês.
O investigador assentiu. Com a promessa de no dia seguinte mandar buscar Pedro Bala, o diretor retirou-se.
Na madrugada, quando Pedro acordou, os presos cantavam. Era uma moda triste. Falava do sol que havia nas ruas, em quanto é grande e bela a liberdade.
O bedel Ranulfo, que o tinha ido buscar na polícia, o levou à presença do diretor. Pedro Bala sentia o corpo todo doer das pancadas do dia anterior. Mas ia satisfeito, porque nada tinha dito, porque não revelara o lugar onde os Capitães da Areia viviam. Lembram-se da canção que os presos cantavam na madrugada que nascia. Dizia que a liberdade é o bem maior do mundo. Que nas ruas havia sol e luz e nas células havia uma eterna escuridão porque ali a liberdade era desconhecida. Liberdade.João de Adão, que estava nas ruas, sob o sol, falava nela também. Dizia que não era só por salários que fizera aquelas greves nas docas e faria outras. Era pela liberdade que os doqueiros tinham pouca. Pela liberdade o pai de Pedro Bala morrera.n Pela liberdade - pensava Pedro - dos seus amigos, ele apanhara uma surra na polícia. Agora seu corpo estava mole e dolorido, seus ouvidos cheios da moda que os presos cantavam. Lá fora, dizia a velha canção, é o sol, a liberdade e a vida.Pela janela Pedro Bala vt o sol. A estrada passa adiante dó grande portão do reformatório. Aqui dentro é como se fosse uma eterna escuridão. Lá fora é a liberdade e a vida. E a vingança, pensa Pedro Bala.
O diretor entra. O bedel Ranulfo o cumprimenta e mostra Bala. O diretor sorri, esfrega as mãos uma na outra, senta ante uma alta secretária. Olha Pedro Bala uns minutos:
- Afinal... Faz bastante tempo que espero este pássaro, Ranulfo.
O bedel sorri aprovando as palavras do diretor.
- É o chefe dos tais de Capitães da Areia. Veja... O tipo do criminoso nato. É verdade que você não leu Lombroso... Mas se lesse, conheceria. Traz todos os estigmas do crime na face. Com esta idade já tem uma cicatriz. Espie os olhos... Não pode ser tratado como um qualquer. Vamos lhe dar honras especiais...
Pedro Bala o espia com os olhos injetados. Sente cansaço, uma vontade doida de dormir. Bedel Ranulfo aventura uma pergunta:
- Levo pra junto dos outros?
- O quê? Não. Para começar, meta-o na cafua. Vamos ver se ele sai um pouco mais regenerado de lá...
O bedel cumprimenta e vai saindo com Pedro Bala. O diretor ainda recomenda:
- Regime número 3.
- Água e feijão... - murmura Ranulfo. Dá uma espiada em Pedro Bala, balança a cabeça. - Vai sair bem mais magro.
Lá fora é a liberdade e o sol. A cadeia, os presos na cadeia, a surra ensinaram a Pedro Bala que a liberdade é o bem maior do mundo.
Agora sabe que não foi apenas para que sua história fosse contada no cais, no Mercado, na Porta do Mar, que seu pai morrera pela liberdade. A liberdade é como o sol. É o bem maior do mundo.
Ouviu o bedel Ranulfo fechar o cadeado por fora. Fora atirado dentro da cafua. Era um pequeno quarto, por baixo da escada, onde não se podia estar em pé, porque não havia altura, nem tampouco estar deitado ao comprido, porque não havia comprimento. Ou ficava sentado, ou deitado com as pernas voltadas para o corpo numa posição mais que incômoda. Assim mesmo Pedro Bala se deitou. Seu corpo dava uma volta e seu primeiro pensamento era que a cafua só servia para o homem-cobra que vira, certa vez, no circo. Era totalmente cerrado o quarto, a escuridão era completa. O ar entrava pelas frestas finas e raras dos degraus da escada. Pedro Bala, deitado como estava, não podia fazer o menor movimento. Por todos os lados as paredes o impediam. Seus membros doíam, ele tinha uma vontade doida de esticar as pernas. Seu rosto estava cheio de equimoses das pancadas na polícia, e desta vez Dora não estava ali para trazer um pano frio e cuidar do seu rosto ferido. A liberdade era Dora também.Não era só o sol, andar livre nas ruas, rir no cais a grande gargalhada dos Capitães da Areia. Era também sentir junto a si o cabelo loiro de Dora, ouvir ela contar coisas do morro, sentir os lábios dela sobre os seus lábios feridos. Noiva. Também ela estava sem liberdade. Os membros de Pedro Bala doem e agora dói sua cabeça também. Dora está como ele, sem sol, sem liberdade. Foi levada para um orfanato. Noiva. Antes que ela aparecesse ele nunca pensara nesta palavra: noiva. Gostava de derrubar negrinhas no areal. De encostar peito com peito, cabeça com cabeça, pernas com pernas, sexo com sexo. Mas nunca pensara em deitar na areia ao lado de uma menina, menina como ele, e conversar de coisas tolas e correr picula como os outros meninos, sem a derrubar para fazer o amor. Era outra maneira do amor, pensava numa confusão. Ele nunca tivera uma ideia perfeita do amor. Que era ele, senão uma criança abandonada nas ruas, que pela força e agilidade e coragem conseguira chefiar o grupo mais valente de meninos abandonados, os Capitães da Areia? Que podia saber de amor? Sempre pensara que o amor fosse o momento gostoso em que uma negrinha ou uma mulata gemia sob seu corpo no areal do cais. Isto cedo aprendeu, quando não tinha ainda 13 anos. Isto sabiam todos os Capitães da Areia, mesmo os mais pequenos, aqueles que ainda não tinham forças para derrubar uma cabrocha. Mas já o sabiam, e pensavam com alegria no dia em que o fariam. Os membros e a cabeça de Pedro Bala doem. Tem sede, ainda não bebeu nem comeu neste dia. Com Dora foi diferente. Logo que ela chegou, tanto ele como todos os que estavam no trapiche pensaram em a derrubar, em a possuir, em praticar com ela, que era bonita, o único amor de que tinham notícia. Mas como era apenas uma menina, eles a tinham respeitado. Depois ela foi como uma mãe para todos. E como uma irmã também, João Grande dizia certo. Mas para ele desde o primeiro momento fora diferente. Fora também uma companheira de brinquedos como para os demais, irmã querida. Mas fora também uma alegria diversa da que dá uma irmã. Noiva. Gostaria, sim. Mesmo quando quer negar a si próprio não pode. É verdade que nada faz para isso, que se contenta de conversar com ela, de ouvir a sua voz, pegar timidamente na sua mão. Mas gostaria de possuí-la também, de vê-la gemer de amor. Não, porém, por uma noite. Por todas as noites de toda uma vida. Como outros têm esposa, esposa que é mãe, irmã e amiga. Ela era mãe, irmã e amigados Capitães da Areia. Para Pedro Bala é noiva, um dia será esposa. Não a podem ter num orfanato como uma menina sem ninguém. Ela tem um noivo, uma legião de irmãos e de filhos de quem cuidar. O cansaço desaparece dos membros de Pedro Bala. Ele precisa de movimento, de andar, de correr, para poder conceber um plano para livrar Dora. Ali naquela escuridão é que não pode. Fica inútil pensando que ela está talvez numa cafua também. Senta-se como pode. Ratos correm na cafua. Mas ele está por demais acostumado com os ratos, não liga. Mas Dora terá medo deste ruído contínuo. É de enlouquecer um que não seja o chefe dos Capitães Areia. Quanto mais uma menina... É verdade que Dora é a menina valente de quantas mulheres já nasceram na Bahia, que é a terra das mulheres valentes. Mais valente mesmo que Rosa Palmeirão, que deu em seis soldados, que Maria Cabaçu, que não respeitava cara, que a companheira de Lampião, que maneja um fuzil igual a um cangaceiro. Mais valente porque é apenas uma menina, apenas está começando a viver. Pedro Bala sorri com orgulho, apesar das dores, do cansaço, sede que aos poucos o aperta. Como seria bom um copo d'água! Diante do areal do trapiche é o mar, um nunca acabar de água. Mar que o Querido-de-Deus, o grande capoeirista, corta com seu saveiro para as pescarias nos mares do Sul. O Querido-de-Deus é um bom sujeito. Se Pedro Bala não houvesse aprendido com ele o jogo capoeira de Angola, a luta mais bonita do mundo, porque é também uma dança, não teria podido dar fuga a João Grande, Gato e Sem-Pernas. Agora ali, na cafua, sem poder se mexer, a capoeira não vai lhe servir de nada. Gostaria era de beber água. Será que Dora também tem sede a estas horas? Deve estar também numa cafua, Pedro Bala imagina o orfanato igualzinho ao reformatório. A sede é pior que uma cobra cascavel. Faz mais medo que a bexiga. Porque vai apertando a garganta de um, vai fazendo os pensamentos confusos. Um pouco de água. Um pouco de luz também. Porque se houver um pouco de luz talvez ele veja o rosto de Dora risonho. Assim na escuridão ele o vê cheio de sofrimento, cheio de dor. Uma raiva surda, impotente, cresce dentro dele. Levanta-se um pouco, a cabeça encosta nos degraus escada que lhe serve de teto. Esmurra a porta da cafua. Mas parece que lá fora não tem ninguém que o ouça. Vê a cara malvada do diretor. Enterrará seu punhal até o mais fundo do coração do diretor. Sem que sua mão trema, sem remorsos, gozando. Seu punhal ficou na polícia. Mas Volta Seca lhe dará o seu, ele tem uma pistola.Volta Seca quer ir para o bando de Lampião, que é seu padrinho. Lampião mata soldado, mata homem ruim. Pedro Bala neste momento ama Lampião como a um seu herói, a um seu vingador. É o braço armado dos pobres no sertão. Um dia ele poderá ser do grupo de Lampião também. E quem sabe se não poderiam invadir a cidade da Bahia, abrir a cabeça do diretor do reformatório? Que cara ele não faria quando visse Pedro Bala entrar no reformatório na frente de uns cangaceiros... Soltaria a garrafa de pinga, presente de um amigo de Santo Amaro, e Pedro Bala lhe abriria a cabeça. Não. Antes o deixaria naquela mesma cafua, sem ter o que comer, sem ter o que beber. Sede... A sede o maltrata. Faz com que ele veja na escuridão da parede o rosto triste e doloroso de Dora. Aquela certeza de que ela está sofrendo... Fecha os olhos. Procura pensar em Professor, Volta Seca, João Grande, Gato, Sem-Pernas, Boa-Vida, todos os do trapiche salvando Dora. Mas não pode. Mesmo de olhos fechados vê o rosto dela, amargurado pela sede. Esmurra a porta novamente.