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Grita, xinga nomes. Ninguém o atende, ninguém o vê, ninguém o ouve. Assim deve ser o inferno. Pirulito tem razão de ter medo do inferno. É por demais terrível.Sofrer sede e escuridão. A canção dos presos dizia que lá fora é a liberdade e o sol. E também a água, os rios correndo muito alvos sobre pedras, as cascatas caindo, o grande mar misterioso. Professor, que sabe muitas coisas, porque à noite lê livros furtados, à luz de uma vela (está comendo os olhos...) lhe disse certa vez que tem mais água no mundo que terra. Tinha lido num livro. Mas nem um pingo de água na sua cafua. Na de Dora não deve ter também. Para que esmurrar a porta como o faz neste momento? Ninguém o atende, suas mãos já doem. Na véspera o surraram na polícia. Suas costas estão negras, seu peito ferido, o rosto inchado. Por isso o diretor disse que ele tinha cara de criminoso. Não tem, não. Ele quer é liberdade. Um dia um velho disse que não se mudava o destino de ninguém. João de Adão disseque se mudava, sim, ele acreditara em João de Adão. Seu pai morrera para mudar o destino dos doqueiros. Quando ele sair, irá ser doqueiro também, lutar pela liberdade, pelo sol, por água e de comer para todos. Cospe um cuspe grosso. A sede aperta sua garganta. Pirulito quer ser padre para fugir daquele inferno. Padre José Pedro sabia que o reformatório era assim, falava contra meterem os meninos lá. Mas que podia um pobre padre sem paróquia contra todos? Porque todos odeiam os meninos pobres, pensa Pedro Bala. Quando sair, pedirá à mãe de santo Don'Aninha que faça um feitiço forte para matar o diretor. Ela tem força com Ogum, e ele uma vez tirara Ogum da polícia. Fizera muita coisa para a sua idade. Dora também fizera muita coisa naqueles meses entre eles. Agora passavam sede, Pedro Bala esmurra inutilmente uma porta. A sede o rói por dentro como uma legião de ratos.Cai enrodilhado no chão e o cansaço o vence. Apesar da sede, dorme. Mas tem sonhos terríveis, ratos roem o rosto belo de Dora.

Acorda porque alguém bate pancadas leves num dos degraus da escada. Levanta-se curvado, não pode ficar de pé direito, que a escada não consente. Pergunta em voz baixa:

- Tem alguém aí?

Uma alegria doida o invade quando respondem:

- Quem é que tá aí?

- Pedro Bala.

- Tu é o chefe dos Capitães da Areia?

- Sou.

Ouve um assovio. A voz continua, agora rápida:

- Tenho um recado pra você, um trouxe hoje..

- Solta logo...

- Agora vem gente. Depois volto.

Pedro Bala ouve os passos que se afastam. Mas está mais alegre.

Pensa em seguida que o recado é de Dora, mas vê que é uma tolice pensar isso. Como Dora havia de lhe enviar um recado? Deve ser um do grupo. Devem estar tratando de tirá-lo dali. Mas primeiro é preciso que ele saia da cafua. Enquanto ele estiver ali, os Capitães da Areia não poderão fazer nada. Depois que ele estiver andando no reformatório todo, aí a fuga será fácil. Pedro Bala senta-se para pensar. Que hora serão, que dia será? Ali é sempre noite, nunca brilha a luz do sol. Espera impaciente que o seu informante volte. Porém este demora, ele se agita. Que estarão fazendo os outros sem ele? Professor conceberá algum plano para o tirarem dali.Mas enquanto ele estive na cafua é inútil. E enquanto não o tirarem, ele não poderá tirar Dora do orfanato. Abrem a porta. Pedro Bala se atira para a frente, pensando que o vão soltar. Uma mão o empurra: - Ei, calma...

Vê o bedel Ranulfo na porta. Traz um caneco com água, que Pedro Bala arranca das suas mãos e bebe em grandes goles. Mas é tão pouca... Não chega para matar a sede.O bedel lhe entrega um prato de barro com uma água onde boiam alguns caroços de feijão. Pedro Bala pede:

- Pode me dar um pouco mais de água?

- Amanhã... - ri o bedel.

- Só um pouco mais.

- Amanhã tem mais. E se você continuar a bater na porta e gritar em vez de 8 passa 15 dias - empurra a porta na cara de Pedro Bala.

Ouve a chave que o tranca. Tateia na escuridão até encontrar o prato. Bebe a água escura do feijão. Nem repara que é salgadíssima. Depois come os grãos duros.Mas a sede o ataca novamente. O feijão muito salgado ativa a sede. O que é um caneco de água para aquela sede que exigia uma moringa? Deita. Já não pensa em nada.Passam-se horas. Ele apenas vê na escuridão o rosto triste de Dora. E sente dores no corpo todo.

Muito mais tarde ouve novamente baterem na escada. Pergunta:

- Tá aí?

- Um capenga mandou dizer que vão te tirar daqui. Logo que tu saia da cafua...

- Já é de noite? - pergunta Pedro.

- Tá começando...

- Tou morto de sede.

A voz não responde. Pedro pensa com desespero que é capaz do menino ter ido embora. No entanto, ele não ouviu passos na escada...

Mas volta a voz:

- Água não posso. Não tem como passar. Mas quer um cigarro?

- Quero, sim.

- Então espera.

Minutos depois as pancadas soam muito de leve na porta. A vi por debaixo da porta:

- Vou passar o cigarro por aqui. Ponha as mãos embaixo, bem no meio da greta da porta.

Pedro Bala faz o que lhe mandam. Um cigarro amassado chega às suas mãos. Ele acaba de o retirar de sob a porta. Logo depois é um fósforo que vem sobre um pedaço de caixa, o pedaço onde se risca.

- Obrigado diz Pedro Bala.

Mas neste momento ouve um barulho lá fora. O som de uma bofetada, um corpo que rola. E uma voz que ele não conhece fala:

- Se tentar se comunicar com os de fora, seu castigo será aumentado.

Pedro se encolhe. Agora um vai sofrer castigo por causa dele. Quando fugir, levará aquele para os Capitães da Areia. Para o sol e liberdade. Acende o cigarro.Com muito cuidado para não perder fósforo que é o único. Esconde a brasa do cigarro sob a mão para que ninguém o possa ver pelas frestas da escada. O silêncio o envolve de novo, e com o silêncio os pensamentos, as visões.