Pedro mete o rolo de corda debaixo do paletó, abre para o dormitório. Um bedel vem descendo a escada com um revólver na mão. Pedro se esconde atrás de uma porta.O bedel vem rápido, passa.
Empurra a corda para baixo do colchão, volta para o canavial. Jeremias foi levado para a cafua. Os bedéis agora juntam os meninos. Ranulfo e Campos foram em perseguição de Agostinho, que pulou a cerca na confusão da briga. O bedel Fausto, com um talho no ombro, foi para a enfermaria. O diretor está entre eles, os olhos fuzilando de raiva. Um bedel conta os meninos. Pergunta a Pedro Bala:
- Onde estava metido?
- Saí pra não me meter no barulho.
O bedel o olha desconfiado, mas passa.
Voltam Ranulfo e Campos com Agostinho. O fujão é surrado na vista de todos. Depois o diretor diz:
- Metam-no na cafua.
- Já está Jeremias - fala Ranulfo.
- Ficam os dois. Assim podem conversar...
Pedro Bala se arrepia. Como irão ficar dois na pequenez da cafua?
Nesta noite a vigilância é grande, ele não tenta nada. Os meninos rangem os dentes de raiva.
Duas noites depois, quando o bedel Fausto já tinha se recolhido há muito ao seu quarto de tabiques e quando todos dormiam, Pedro Bala se levantou, tirou a corda de sob o colchão. Sua cama ficava junto a uma janela. Abriu. Amarrou a corda num dos armadores de rede que existiam na parede. Deixou que a corda caísse pela janela.Era curta. Faltava ainda muito. Recolheu. Procurava fazer o menor barulho possível, mas assim mesmo um dos seus vizinhos de cama acordou:
- Tu vai bater asa?
Aquele não tinha boa fama. Costumava delatar. Por isso mesmo fora colocado ao lado de Pedro Bala. Bala puxou o punhal, mostrou a ele.
- Olha, xereta, trata de dormir. Se tu piar, eu te abro a garganta, palavra de Pedro Bala. E se tu disser alguma coisa depois que eu sair... Tu já viu falar nos Capitães da Areia?
- Já.
- Pois eles me vinga.
Põe o punhal ao alcance da mão. Recolhe completamente a corda, amarra o lençol na ponta com um daqueles nós que o Querido-de-Deus lhe ensinou. Ameaça mais uma vez o menino, joga a corda, passa o corpo pela janela, começa a descida. Ainda no meio ouve os gritos denunciadores do delator. Se deixa escorregar pela corda, salta ao chão. O pulo é grande, mas ele já salta correndo. Pula a cerca, após evitar os cachorros policiais que estão soltos. Desaba pela estrada. Tem alguns minutos de vantagem. O tempo dos bedéis se vestirem e saírem em sua perseguição e soltarem os cachorros também. Pedro Bala prende o punhal nos dentes, tira a roupa. Assim os cachorros não o conhecerão pelo faro. E nu, na madrugada fria, inicia a carreira para o sol, para a liberdade.
Professor lê a manchete do Jornal da Tarde:
O chefe dos "Capitães da Areia" consegue fugir do reformatório
Trazia uma longa entrevista com o diretor furioso. Todo o trapiche ri. Até o padre José Pedro, que está com eles, ri em gargalhadas, como se fosse um dos Capitães da Areia.
Capítulo 16 - Orfanato
Um mês de orfanato bastou para matar a alegria e a saúde de Dora. Nascera no morro, infância em correrias no morro. Depois a liberdade das ruas da cidade, a vida aventurosa dos Capitães da Areia. Não era uma flor de estufa. Amava o sol, a rua, a liberdade.
Fizeram duas tranças do seu cabelo, amarraram com fitas. Fitas cor-de-rosa. Deram-lhe um vestido de pano azul, um avental de um azul mais escuro. Faziam com que ela ouvisse aulas junto com meninas de cinco e seis anos. A comida era má, havia castigo também.
Ficar em jejum, perder os recreios. Veio uma febre, ela esteve na enfermaria. Quando voltou estava macilenta. Tinha sempre febre, mas não dizia nada, porque odiava o silêncio da enfermaria, onde o sol não entrava e das as horas pareciam a hora agonizante do crepúsculo. Quando podia, chegava perto das grades, porque por vezes divisava Professor ou João Grande que rondavam por ali. Um dia lhe passaram um bilhete. Pedro Bala fugira do reformatório. Viria tirá-la dali. Nem sentiu a febre em que estava.
A visaram por intermédio de outro bilhete, que Professor escreveu e lhe jogou, que ela arranjasse um meio de ir para a enfermaria. Mas nem foi preciso, porque uma irmã notou o avermelhado das suas faces. Pôs a mão no seu rosto:
- Estás queimando de febre.
Era sempre crepúsculo na enfermaria. Era como uma antessala do túmulo, com as pesadas cortinas que impediam a luz de entrar. O médico que a vira balançara a cabeça com tristeza.
Mas a luz entrou com eles. Como Pedro Bala estava magro, pensou Dora ao se pôr ao seu lado. João Grande, Gato, Professor, estavam com ele. Professor mostrou anavalha à Irmã, que abafou um grito. A menina que estava com catapora na outra cama tremia sob os lençóis. Dora queimava de febre, mal podia estar de pé. A Irmã murmurou:
- Ela está muito doente...
Dora respondeu:
- Eu vou, Pedro.
Saíram pela porta. Volta Seca tinha o grande cachorro preso pela coleira. Tinham trazido um pedaço de carne. Gato abriu o portão. Na rua disse:
- Foi canja...
Professor avisou:
- Vamos embora antes que alarmem.
Se atiraram por uma ladeira. Dora nem sentia a febre porque ia junto com Pedro Bala, ele pegando na sua mão.
Volta Seca fechava a marcha, a mão no punhal, um sorriso no rosto sombrio.
Capítulo 17 - Noite de Grande Paz
Os Capitães da Areia olham mãezinha Dora, a irmãzinha Dora, Dora noiva, Professor vê Dora, sua amada. Os Capitães da Areia olham em silêncio. A mãe de santo Don'Aninha reza oração forte para a febre que consome Dora desaparecer. Com um galho de sabugueiro manda que a febre se vá. Os olhos febris de Dora sorriem. Parece que a grande paz da noite da Bahia está também nos seus olhos.
Os Capitães da Areia olham em silêncio sua mãe, irmã e noiva.
Mal a recuperaram, a febre a derrubou. Onde está a alegria dela, por que ela não corre picula com seus filhinhos menores, não vai para a aventura das ruas com seus irmãos negros, brancos e mulatos? Onde está a alegria dos olhos dela? Só uma grande paz, a grande paz da noite. Porque Pedro Bala aperta sua mão com calor.
A paz da noite da Bahia não está no coração dos Capitães da Areia. Tremem com receio de perder Dora. Mas a grande paz da noite está nos olhos dela. Olhos que se fecham docemente, enquanto a mãe de santo Aninha enxota a febre que a devora.
A paz da noite envolve o trapiche.
Capítulo 18 - Dora, Esposa
O cachorro late a lua na areia. Sem-Pernas sai do trapiche, acompanha Don'Aninha através do areal. Ela disse que a febre não tardaria a ir embora. Pirulito sai também, vai chamar o padre José Pedro. Tem confiança no padre, ele pode saber um remédio.
Dentro do trapiche os Capitães da Areia estão silenciosos. Dora pediu que eles fossem dormir. Se deitaram pelo chão, mas são raros os que dormem. Na paz imensa da noite pensam na febre que consome Dora. Ela beijou Zé Fuinha, mandou que ele fosse dormir. Ele não compreende bem. Sabe que ela está doente, mas não pensa um momento que ela o poderá abandonar.Mas os Capitães da Areia temem que isso aconteça. Então ficarão novamente sem mãe, sem irmã, sem noiva.
Agora só João Grande e Pedro Bala estão a seu lado. O negro sorri, mas Dora sabe que o sorriso dele é forçado, é um sorriso para a animar, um sorriso arrancado à força da tristeza que o negro sente.
Pedro Bala segura sua mão. Mais retirado, Professor está dobrado sobre si mesmo, a cabeça enterrada nas mãos.
Dora diz:
- Pedro?
- Que é?
- Chegue aqui.
Ele se aproxima. A voz dela é um fio de voz. Pedro fala com carinho:
- Tu quer alguma coisa?
- Tu gosta de mim?