- Tu bem sabe...
- Deita aqui.
Pedro deita ao seu lado. João Grande se afasta, chega para perto de Professor. Mas não conversam, ficam entregues à sua tristeza. No entanto é uma noite de paz que envolve o trapiche. E a paz da noite está também nos olhos doentes de Dora.
- Mais perto...
Ele se chega mais, os corpos estão juntos. Ela toma a mão dele, leva ao seu peito. Arde de febre. A mão de Pedro está sobre seu seio de menina. Ela faz com que ele a acaricie, diz:
- Tu sabe que já sou moça?
A mão dele pousada nos seus seios, os corpos juntos. Uma grande paz nos olhos dela:
- Foi no orfanato... Agora posso ser tua mulher.
Ele a olha espantado:
- Não, que tu tá doente...
- Antes de eu morrer. Vem...
- Tu não vai morrer.
- Se tu vier, não.
Se abraçam. O desejo é abrupto e terrível. Pedro não a quer magoar, mas ela não mostra sinais de dor. Uma grande paz em todo seu ser.
- Tu é minha agora fala ele com voz agitada.
Ela parecia não sentir a dor da posse. Seu rosto acendido pela febre se enche de alegria. Agora a paz é só da noite, com Dora está a alegria. Os corpos se desunem. Dora murmura:
- É bom... Sou tua mulher.
Ele a beija. A paz voltou ao rosto dela. Fita Pedro Bala com amor.
- Agora vou dormir - diz.
Deita ao lado dela, segura sua mão ardente. Esposa.
A paz da noite envolve os esposos. O amor é sempre doce e bom, mesmo quando a morte está próxima. Os corpos não se balançam mais no ritmo do amor. Mas nos corações dos dois meninos não há mais nenhum medo. Somente paz, a paz da noite da Bahia.
Na madrugada, Pedro põe a mão na testa de Dora. Fria. Não tem mais pulso, o coração não bate mais. O seu grito atravessa o trapiche, desperta os meninos. João Grande a olha de olhos abertos. Diz a Pedro Bala:
- Tu não devia ter feito...
- Foi ela que quis - explica e sai para não rebentar em soluços.
Professor se chega, fica olhando. Não tem coragem de tocar no corpo dela. Mas sente que para ele a vida do trapiche acabou, não lhe resta mais nada que fazer ali. Pirulito entra com o padre José Pedro. O padre pega no pulso de Dora, bota a mão na testa:
- Está morta.
Inicia uma oração. E quase todos rezam em voz alta.
- Padre nosso que estais no céu...
Pedro Bala se lembra das rezas à noite no reformatório. Seus ombros se encolhem, tapa os ouvidos. Volta-se, vê o corpo de Dora. Pirulito pôs uma flor roxa entre seus dedos. Pedro Bala rompe em soluços.
Veio a mãe de santo Don'Aninha, veio também o Querido-de-Deus. Pedro Bala não toma parte da conversa. Aninha diz:
- Foi como uma sombra nesta vida. Vira santa na outra Zumbi dos Palmares é santo dos candomblés de caboclo, Rosa Palmeirão também. Os homens e as mulheres valentes viram santo dos negros...
- Foi como uma sombra... - repete João Grande.
Foi como uma sombra para todos, um acontecimento sem explicação. Menos para Pedro Bala, que a teve. Menos para Professor que a amou.
Padre José Pedro fala - Vai pro céu, não tinha pecado. Não sabia o que era pecado...
Pirulito reza. Querido-de-Deus sabe o que esperam dele. Que leve o cadáver no seu saveiro e o jogue no mar, adiante do forte velho. Como poderá sair um enterro do trapiche? É difícil explicar tudo isso ao padre José Pedro. O Sem-Pernas o faz numa voz apressada. O padre a princípio se horroriza. É um pecado, ele não pode consentir num pecado. Mas consente, que não vai denunciar onde moram os Capitães da Areia. Pedro Bala não fala.
Em torno é a paz da noite. Nos olhos mortos de Dora, olhos de mãe, de irmã, de noiva e de esposa, há uma grande paz. Alguns meninos choram. Volta Seca e João Grande vão levar o corpo. Mas, parado ante ele, está Pedro Bala, imóvel. Volta Seca não pode estende as mãos. João Grande chora como uma mulher. Don'Aninha toma do braço de Pedro, tira-o dali e envolve o corpo de Dora numa toalha branca de rendas:
- Vai para Yemanjá - diz. - Ela também vira santo...
Mas ninguém pode levar o cadáver. Porque Pedro Bala está abraçado com ele, não o larga. Professor o chama:
- Deixa. Eu também gostava dela. Agora...
Levam-na para a paz da noite, para o mistério do mar. O padre reza, é uma estranha procissão que se dirige na noite para o saveiro do Querido-de-Deus. Do areal, Pedro Bala vê o saveiro que se afasta. Morde as mãos, estende os braços.
Voltam para o trapiche. A vela branca do saveiro se perde no mar. A lua ilumina o areal, as estrelas tanto estão no céu como no mar. Há uma paz na noite. Paz que veio dos olhos de Dora.
Capítulo 19 - Como uma Estrela de Loira Cabeleira
Contam no cais da Bahia que quando morre um homem valente vira estrela no céu. Assim foi com Zumbi, com Lucas da Feira, com Besouro, todos os negros valentes.Mas nunca se viu um caso de uma mulher, por mais valente que fosse, virar estrela depois de morta.
Algumas, como Rosa Palmeirão, como Maria Cabaçu, viraram santas nos candomblés de caboclo. Nunca nenhuma virou estrela.
Pedro Bala se joga na água. Não pode ficar no trapiche, entre os soluços e as lamentações. Quer acompanhar Dora, quer ir com ela, se reunir a ela nas Terras do Sem Fim de Yemanjá. Nada para diante sempre. Segue a rota do saveiro do Querido-de-Deus. Nada, nada sempre. Vê Dora em sua frente, Dora, sua esposa, os braços estendidos para ele. Nada até já não ter forças. Boia então, os olhos voltados para as estrelas e a grande lua amarela do céu. Que importa morrer quando se vai em busca da amada, quando o amor nos espera?
Que importa tampouco que os astrônomos afirmem que foi um cometa que passou sobre a Bahia naquela noite? O que Pedro Bala viu foi Dora feita estrela, indo para o céu. Fora mais valente que todas mulheres, mais valente que Rosa Palmeirão, que Maria Cabaçu. Tão valente que antes de morrer, mesmo sendo uma menina, se dera ao seu amor. Por isso virou uma estrela no céu. Uma estrela de longa cabeleira loira, uma estrela como nunca tivera nenhuma na noite de paz da Bahia.
A felicidade ilumina o rosto de Pedro Bala. Para ele veio também a paz da noite. Porque agora sabe que ela brilhará para ele entre mil estrelas no céu sem igual da cidade negra.
O saveiro do Querido-de-Deus o recolhe.
Terceira Parte - Canção da Bahia, Canção da Liberdade Capítulo 20 - Vocações
Não havia passado muito tempo sobre a morte de Dora, a imagem da sua presença tão rápida e no entanto tão marcante, da sua morte também, ainda enchia de visões as noites do trapiche. Alguns, quando entravam, todavia, olhavam para o canto onde ela costumava sentar ao lado do Professor e de João Grande. Ainda com a esperança de encontrá-la. Fora um acontecimento sem explicação. Fora o totalmente inesperado na vida deles, o aparecimento de uma mãe, de uma irmã. Motivo por que eles ainda a procuravam, apesar de terem visto o Querido-de-Deus a levar no seu saveiro para o fundo do mar. Só Pedro Bala não a procurava no trapiche. Procurava ver, no céu de tanta estrela, uma que tivesse longa e loira cabeleira.
Um dia Professor entrou no trapiche e não acendeu sua vela, não abriu um livro de histórias, não conversou. Para ele toda aquela vida tinha acabado desde que Dora fora levada pela febre. Quando ela viera, enchera o trapiche com sua presença. Para Professor tudo tinha uma nova significação. O trapiche ficara como a moldura de um quadro: ora os cabelos loiros caindo sobre Gato, que via sua mãe, ora os lábios que beijavam Zé Fuinha para ele dormir. Ou a boca que cantava cantigas de ninar.Também sorrisos de orgulho para a coragem de Volta Seca, como se fosse uma destemida mulata sertaneja. Ou a entrada no trapiche, os cabelos voando, o rosto todo rindo, de volta da aventura do dia nas ruas da cidade. Ou os olhos cheios de amor, a febre queimando seu rosto, as mãos chamando o amado para a posse primeira e última. Agora Professor olhava o trapiche como para uma moldura sem quadro. Inútil. Para ele deixara de ter significação, ou tinha uma significação terrível demais. Mudara muito naqueles meses após a morte de Dora, andava calado, o rosto sério, e entrara em relações com aquele senhor que certa vez, num passeio da rua Chile, conversara com ele, lhe dera uma piteira e seu endereço.