Nesta noite Professor não acendeu vela, não abriu livro de história. Ficou calado quando João Grande veio para seu lado. Arrumava suas coisas numa trouxa. Quase tudo era livro. João Grande olhava sem dizer nada, mas compreendia muito, se bem todos dissessem que não havia negro mais burro que o negrinho João Grande. Mas quando Pedro Bala chegou e sentou também a seu lado e lhe ofereceu um cigarro, Professor falou:
- Vou embora, Bala...
- Pra onde, mano?
Professor olhou o trapiche, os meninos que andavam, que riam, que se moviam como sombras entre os ratos:
- Que adianta a vida da gente? Só pancada na polícia quando pegam a gente. Todo mundo diz que um dia pode mudar... Padre José Pedro, João de Adão, tu mesmo. Agora vou mudar a minha...
Pedro Bala não disse nada, mas a pergunta estava nos seus olhos. João Grande não perguntava nada, compreendia tudo.
- Vou estudar com um pintor do Rio. Dr. Dantas, aquele da piteira, escreveu a ele, mandou uns desenhos meus. Ele mandou dizer que me mandasse... Um dia vou mostrar como é a vida da gente... Faço o retrato de todo mundo... Tu falou uma vez, lembra? Pois faço...
A voz de Pedro Bala o animou:
- Tu também vai ajudar a mudar a vida da gente...
- Como? - fez João Grande.
Professor também não entendeu. Tampouco Pedro Bala sabia explicar. Mas tinha confiança no Professor, nos quadros que ele faria na marca do ódio que ele levava no coração, na marca de amor à justiça e à liberdade que ele levava dentro de si. Não se vive inutilmente uma infância entre os Capitães da Areia. Mesmo quando depois se vai se um artista e não um ladrão, assassino ou malandro. Mas Pedro Bala não sabia explicar tudo isso. Apenas disse:
- A gente nunca te esquece, mano... Tu lia história para gente, era o mais batuta da gente... O mais batuta...
Professor baixou a cabeça. João Grande se levantou, sua voz era um chamado, era um grito de despedida também:
- Gentes! Gentes!
Vieram todos, ficaram em torno. João Grande estendeu os braços:
- Gentes, Professor vai embora. Vai ser um pintor no Rio de Janeiro. Gentes, viva Professor!
O viva apertou o coração do menino. Olhou para o trapiche. Não era como um quadro sem moldura. Era como a moldura de inúmeros quadros. Como quadros de uma fita de cinema. Vida s de luta e de coragem. De miséria também. Uma vontade de ficar. Mas que adiantava ficar? Se fosse, poderia ser de melhor ajuda. Mostraria aquelas vidas... Apertam sua mão, o abraçam. Volta Seca está triste, tão triste como se tivesse morrido um cangaceiro do grupo de Lampião.
Na noite do cais o homem da piteira, que era um poeta, entrega uma carta e dinheiro a Professor:
- Ele o esperará no cais. Telegrafei. Espero que você não traia a confiança que depositei no seu talento.
Nunca um passageiro de terceira teve tanta gente na sua despedida. Volta Seca lhe dá um punhal de presente. Pedro Bala faz tudo para rir, para dizer coisas gozadas.Mas João Grande não esconde a tristeza que vai dentro dele.
Professor ainda de longe vê o boné de Pedro, que se sacode no cais. E no meio daqueles homens desconhecidos, oficiais fardados, comerciantes e senhoritas, fica tímido, não sabe que fazer, sente que toda a sua coragem ficou com os Capitães da Areia. Mas dentro do seu peito vem uma marca de amor à liberdade. Marca que o faria abandonar o velho pintor que lhe ensina coisas acadêmicas para ir pintar por sua conta quadros que, antes de admirar, espantam todo o país.
Passou o inverno, passou o verão, veio outro inverno, e este cheio de longas chuvas, o vento não deixou de correr uma só noite areal. Agora Pirulito vendia jornais, fazia trabalhos de engraxate, carregava bagagens dos viajantes. Conseguira deixar de furtar para viver. Pedro Bata consentira que ele continuasse no trapiche, apesar que ele não levava a mesma vida que os outros. Pedro Bala não entende o que vai dentro de Pirulito. Sabe que ele quer ser padre, que quer fugir daquela vida. Mas acha que aquilo não resolverá nada, não endireitará nada na vida de todos eles. O padre José Pedro fazia tudo para mudar a vida deles. Mas era um só, os outros não achavam que ele fizesse bem. Que tinha adiantado? Só todos unidos, como dizia João de Adão.
Mas Deus chamava Pirulito. Nas noites do trapiche o menino ouvia o chamado de Deus. Era uma voz poderosa dentro dele. Uma voz poderosa como a voz do mar, como a voz do vento que corre em torno ao casarão. Uma voz que não fala aos seus ouvidos, que fala seu coração. Uma voz que o chama, que o alegra e o amedronta mesmo tempo. Uma voz que exige tudo dele para lhe dar a felicidade a servir. Deus o chama. E o chamado de Deus dentro de Pirulito é poderoso como a voz do vento, como a voz potente do mar. Pirulito quer viver para Deus, inteiramente para Deus, uma vida de recolhimento e de penitência, uma vida que o limpe dos pecados, que o torne digno da contemplação de Deus. Deus o chama e Pirulito pensa na sua salvação. Será um penitente, não olhará mais o espetáculo do mundo. Não quer ver nada do que se passa no mundo para ter os olhos suficientemente limpos para poderem ver a face de Deus. Porque para aqueles que não têm os olhos completamente limpos de todo pecado, a face de Deus é terrível como o mar enfurecido. Mas para que têm os olhos e o coração limpos de todo o pecado, a face de Deus é mansa como as ondas do mar numa manhã de sol e de bonança.
Pirulito está marcado por Deus. Mas está marcado também pela vida dos Capitães da Areia. Desiste da sua liberdade, de ver e ouvir o espetáculo do mundo, da marca de aventura dos Capitães da Areia, para ouvir o chamado de Deus. Porque a voz de Deus que fala no seu coração é tão poderosa que não tem comparação. Rezará pelos Capitães da Areia na sua cela de penitente. Porque tem que ouvir e seguir a voz que o chama. É uma voz que transfigura seu rosto na noite invernosa do trapiche.Como se lá fora fosse a primavera.
Padre José Pedro foi chamado novamente ao arcebispado. Desta vez o Cônego está acompanhado do superior dos Capuchinhos. Padre José Pedro treme, pensando que novamente vão lhe ralhar, vão falar dos seus pecados. Fez uma coisa contra as leis para ajudar os Capitães da Areia. Teme ter fracassado, porque em quase nada conseguira melhorara vida deles. Mas em certos momentos cruéis levara um pouco de conforto àqueles pequenos corações. E tinha Pirulito... Era uma conquista para Deus. Se não fizera tudo, se não transformara como queria aquelas vidas, não tinha perdido tudo também. Algo havia conseguido para Deus. Se alegrava, apesar da tristeza do pouco que havia conseguido para os Capitães da Areia. Assim mesmo, em certos momentos fora como a família que lhes faltava. Certas horas tinha sido pai e mãe. Agora os chefes estavam já rapazes, quase homens. Professor já tinha ido embora, outros não tardariam a ir. Mesmo que fossem ser ladrões, levar uma vida de pecado, em certos momentos o padre conseguira minorar o espetáculo de miséria das suas vidas com um pouco de conforto e de carinho. E de solidariedade.
Mas desta vez o Cônego não ralha. Anuncia que o arcebispado resolveu lhe dar uma paróquia. Conclui:
- O senhor nos deu muito que fazer, padre, com suas ideias erradas acerca de educação. Espero que a bondade do Sr. Arcebispo lhe dando esta paróquia fará com que o senhor pense nas suas obrigações e desista dessas inovações soviéticas.
A paróquia nunca tivera cura porque o arcebispo nunca encontrara um padre que se dispusesse a ir para o meio dos cangaceiros, numa perdida vila do alto sertão.Mas o nome do lugarejo alegrou o coração do padre José Pedro. Ia para o meio dos cangaceiros. E os cangaceiros são como crianças grandes. Agradeceu, ia falar, mas o superior dos Capuchinhos o interrompeu: