- O Sr. Cônego me disse que entre estes meninos há um que tem vocação sacerdotal.
- Ia falar disso mesmo disse o padre. - Nunca vi uma vocação tão decidida.
O missionário sorriu:
- Porque nós estamos em falta de um irmão. Não é o mesmo que ser padre, bem sei. Mas está muito próximo. E se a sua vocação verdadeira a ordem pode fazê-lo estudar e mesmo se ordenar.
- Ele vai ficar louco de alegria.
- O senhor responde por ele?
Pirulito irá ser frade. Um dia talvez se ordene. O padre sai agradecendo a Deus.
Levam o padre à estação. O apito do trem é como um lamento. Estão ali vários dos Capitães da Areia. Padre José Pedro os fita com amor. Pedro Bala diz:
- O senhor foi bom pra gente, padre. Um homem bom. A gente não vai esquecer o senhor...
Não reconhecem Pirulito quando ele chega vestido com uma batina de frade, um longo cordão pendendo ao lado. Padre José Pedro diz:
- Conhecem o irmão Francisco da Sagrada Família?
Eles olham Pirulito com certa vergonha. Mas Pirulito sorri. Está mais magro, um ar de asceta. Com o hábito de capuchinho fica muito alto.
- Ele rezará por vocês... - diz o padre José Pedro.
Se despede. Entra para o vagão. O trem apita, é como uma despedida. Da janela, o padre vê os meninos que agitam mãos e bonés, velhos chapéus, trapos que servem de lenço. Uma velha que vai defronte dele, doidinha para puxar conversa, se espanta do padre chorando.
Boa-Vida pouco aparece no trapiche. Tem um violão, faz sambas, está enorme, mais um malandro nas ruas da Bahia. Ninguém tem uma vida igual à dos malandros. Passa o dia conversando nas docas, no mercado, vai às festas dos morros e da Cidade de Palha à noite, ou às macumbas. Toca seu violão, come e bebe do melhor, apaixona as cabrochas bonitas com sua voz e sua música. Arma fuzuê nas festas e quando a polícia o persegue vem se esconder no trapiche entre os Capitães da Areia.
Então toca para eles, ri com eles em gargalhadas como se ainda fosse um deles. Boa-Vida vai se afastando aos poucos, à proporção que vai crescendo. Quando tiver dezenove anos já não voltará. Será um malandro completo, um daqueles mulatos que amam a Bahia acima de tudo, que fazem uma vida perfeita nas ruas da cidade. Inimigo da riqueza e do trabalho, amigo das festas, da música, do corpo das cabrochas. Malandro. Armador de fuzuês. Jogador de capoeira navalhista, ladrão quando se fizer preciso. De bom coração, como canta um ABC que Boa-Vida faz acerca de outro malandro. Prometendo às cabrochas se regenerar e ir para o trabalho, sendo malandro sempre.Um dos valentões da cidade. Figura que os futuros Capitães da Areia amarão e admirarão, como Boa-Vida amou e admirou o Querido-de-Deus.
Um dia, passado muito tempo, Pedro Bala ia com o Sem-Pernas pelas ruas. Entraram numa igreja da Piedade, gostavam de ver as coisas de ouro, mesmo era fácil bater uma bolsa de uma senhora que rezasse. Mas não havia nenhuma senhora na igreja àquela hora. Somente um grupo de meninos pobres e um capuchinho que lhes ensinava catecismo.
- É Pirulito... - disse Sem-Pernas.
Pedro Bala ficou olhando. Encolheu os ombros:
- Que adianta?
Sem-Pernas olhou:
- Não dá de comer...
- Um dia um vai ser padre também. Tem que ser é tudo junto.
Sem-Pernas disse:
- A bondade não basta.
Completou:
- Só o ódio...
Pirulito não os via. Com uma paciência e uma bondade extremas ensinava às crianças buliçosas as lições de catecismo. Os dois Capitães da Areia saíram balançando a cabeça. Pedro Bala botou a mão no ombro do Sem-Pernas.
- Nem o ódio, nem a bondade. Só a luta.
A voz bondosa de Pirulito atravessa a igreja. A voz de ódio do Sem-Pernas estava junto de Pedro Bala. Mas ele não ouvia nenhuma. Ouvia era a voz de João de Adão, o doqueiro, a voz de seu pai morrendo na luta.
Capítulo 21 - Canção de Amor da Vitalina
Gato contou que a solteirona era cheia do dinheiro. Era a última de uma família rica, andava pelos quarenta e cinco anos, feia e nervosa. Corna a notícia de que tinha uma sala cheia de coisas de ouro, de brilhantes e joias acumuladas pela família através de gerações. Pedro Bala pensou que era uma coisa capaz de dar um bocado de dinheiro. Gonzales, o dono da casa de penhor O 14, dava dinheiro por aqueles objetos. Perguntou ao Sem-Pernas:
- Tu é capaz de penetrar?
- Se sou...
- Depois a gente invade.
Riram no trapiche. Gato saiu para ver Dalva. Sem-Pernas avisou:
- Amanhã de manhã vou lá.
A solteirona abriu a porta. Só tinha uma criada, uma negra velha, que parecia fazer parte da herança, pois acompanhava a família há cinquenta anos. A solteirona olhou muito digna para o Sem-Pernas:
- Quer alguma coisa?
- Eu sou um pobre ódio e aleijado mostrava a perna coxa. - Não quero viver furtando, nem pedindo esmola. A senhora tem um trabalho para mim? Posso fazer compras.
A solteirona não tirava os olhos dele. Um menino... Não era a bondade que falava dentro dela. Era a voz do sexo que dava seus últimos latidos. Dentro em pouco seu sexo ficaria inútil, os médicos diziam que então o seu nervoso cessaria. Muito antes, quando ainda era mocinha, houvera um menino na casa para fazer compras.Fora bom... Mas seu irmão descobrira, expulsara o menino. Agora o irmão estava morto, outro menino vinha pedir para fazer compras:
- Tá bem.
Mandou que ele tomasse banho. Pela tarde deu-lhe dinheiro para as compras e mais para uma roupa para ele. Sem-Pernas conseguiu bater mil e duzentos nas contas.Pensou:
- Aqui vou é fazer dinheiro...
Na cozinha a negra contava histórias antigas com sua língua embolada. Sem-Pernas ouvia demonstrando excessivo interesse para ganhar confiança da negra. Mas quando perguntou pelas coisas de ouro a negra não respondeu. Sem-Pernas não insistiu. Sabia ser paciente, estava acostumado àquele trabalho. Na sala a solteirona fazia ponto de cruz numa toalha, mirava Sem-Pernas com interesse, pela porta. Era feia de cara, mas o corpo velhusco ainda tinha certo atrativo.
Chamou Sem-Pernas para ver o trabalho que ela estava fazendo, quando Sem-Pernas olhou ela se curvou, ele viu os seios grandes. Mas não pensou que ela estivesse lhe mostrando. Achou o trabalho muito bonito, disse:
- A senhora é muito inteligente...
Parecia até um menino bem-educado. Apesar da perna coxa e da cara feia, a solteirona o achou lindo. Seria melhor que fosse um pouco menos crescido. Mas assim mesmo... Novamente se curvou, mostrou os seios ao Sem-Pernas. Sem-Pernas desviou o olhar, não pensava que fosse de propósito. Quando ele elogiou novamente o trabalho, ela passou a mão no seu rosto:
- Obrigada, meu filho sua voz era lânguida.
A negra botou um colchão na sala de jantar para o Sem-Pernas dormir. Cobriu com um lençol, arranjou um travesseiro. A solteirona conversava na casa de uma amiga, na mesma rua, e quando voltou Sem-Pernas já estava deitado. Ouviu que ela se despedia de alguém:
- Desculpe este trabalho de trazer uma vitalina pra casa.
- Dona Joana, não diga isso...
Entrou, trancou a porta da rua, tirou a chave. A negra já tinha ido dormir no quarto junto da cozinha. A solteirona veio até a sala de jantar, deu uma espiada em Sem-Pernas, que fez que estava dormindo. Suspirou. Marchou para seu quarto.
As luzes estavam todas apagadas na casa. Apesar de ser muito cedo em relação à hora em que dormiam no trapiche, Sem-Pernas se entregou ao sono.
Por isso não sabe a que horas a vitalina veio. Sentiu foi uma mão que passava em seus cabelos. Pensou que fosse um sonho bom. A mão deslizava, passava no seu peito, na sua barriga, agora segurava de manso no seu sexo. Sem-Pernas despertou completamente, mas ficou de olhos fechados. A solteirona machucava seu sexo, se encostava contra ele. Estava de camisa de dormir, suspendeu a camisa, botou a mão de Sem-Pernas no seu corpo, Sem-Pernas se encostou nela. Quis falar, ela pôs a mão na sua boca, apontou para a cozinha: