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Passam violeiros, improvisadores de poesia. Passam vaqueiros que tangem o gado, homens plantam mandioca e milho. Nas estações os coronéis descem para estirar as pernas. Levam grandes revólveres. Os violeiros cegos cantam pedindo uma esmola. Um negro de camisa e rosário atravessa essa a estação dizendo estranhas coisas em língua desconhecida. Foi escravo, hoje é um doido na estação. Todos temem, temem suas pragas. Porque ele sofreu muito, o chicote de feitor rasgou suas costas. Também o chicote da polícia, feitor dos ricos, rasgou as costas de Volta Seca. Todos o temerão um dia também.

Caatingas do sertão, olor das flores sertanejas, o manso andar do trem sertanejo. Homens de alpercatas e chapéu de couro. Criança que estudam para cangaceiro na escola da miséria e da exploração do homem.

O trem para no meio da caatinga. Volta Seca pula fora do vagão. Os cangaceiros apontam os fuzis, o caminhão que os trouxe está parado no outro lado da estrada, os fios do telégrafo cortados. Na caatinga agreste não se vê ninguém. Uma moça desmaia num dos carros, um caixeiro-viajante esconde a carteira com dinheiro.Um coronel gordo sai do vagão, fala:

- Capitão Virgulino...

O cangaceiro de óculos aponta o fuziclass="underline"

- Para dentro.

Volta Seca pensa que seu coração vai estalar de alegria. Encontrou seu padrinho, Virgulino Ferreira Lampião, herói das crianças sertanejas. Chega para junto dele, um outro cangaceiro o quer afastar, mas ele diz:

- Meu padrim...

- Quem é tu?

- Sou Volta Seca, filho de tua comadre...

Lampião o reconhece, sorri. Os cangaceiros estão entrando nos vagões de primeira, não são muitos, uns doze. Volta Seca pede:

- Meu padrim, deixe eu ficar com você... Me dê um fuzil.

- Tu ainda é um menino... - Lampião olha com seus óculos escuros.

- Não sou mais não, já briguei com soldado...

Lampião grita:

- Zé Baiano, dá um fuzil a Volta Seca...

Olha o afilhado:

- Tu guarda esta saída. Se um quiser arribar, mete fogo.

Entra para a coleta. Desmaios e gritos lá dentro, o soar de um disparo. Depois o grupo volta para a estrada. Traz dois soldados de polícia que viajavam no trem.Lampião divide dinheiro com os cangaceiros. Volta Seca também recebe. De um vagão sai um fio de sangue. O cheiro bom do sertão penetra as narinas de volta Seca.Os soldados são encostados numas árvores. Zé Baiano prepara o fuzil, mas a voz de Volta Seca faz um pedido:

- Deixe pra mim, padrim. Eles me bateram na polícia, bateram em muito menino.

Levanta o fuzil, qual é o sertanejo que não tem boa pontaria?

Seu rosto sombrio tem um riso que o enche todo. Cai o primeiro, o segundo tenta fugir, mas a bala o alcança nas costas Depois Volta Seca corre para cima dele com o punhal, sacia sua vingança. Zé Baiano diz:

- Este menino é dos bons...

- A mãe dele era um bicho, minha comadre... - lembra Lampião orgulhoso.

- Uma verdadeira fera... - pensa o viajante enquanto o trem se move lentamente após os empregados afastarem os toros de madeira de sobre os trilhos. O grupo de cangaceiros se perde na caatinga. O ar do sertão enche o peito de Volta Seca, que para e com o punhal faz dois traços na madeira do fuzil. Os dois primeiros...Ao longe o trem apita angustiosamente.

Capítulo 23 - Como um Trapezista de Circo

Fora demasiada audácia atacar aquela casa da rua rui Barbosa. Perto dali, na praça do Palácio, andavam muitos guardas, investigadores, soldados. Mas eles tinham sede de aventura, estavam cada vez maiores, cada vez mais atrevidos. Porém havia muita gente na casa, deram o alarme, os guardas chegaram. Pedro Bala e João Grande abalaram pela ladeira da Praça. Barandão abriu no mundo também. Mas o Sem-Pernas ficou encurralado na rua. Jogava picula com os guardas. Estes tinham se despreocupado dos outros, pensavam que já era alguma coisa pegar aquele coxo. Sem-Pernas corria de um lado para outro da rua, os guardas avançavam. Ele fez que ia escapuli por outro lado, driblou um dos guardas, saiu pela ladeira. Mas em vez de descer e tomar pela Baixa dos Sapateiros, se dirigiu para a praça do Palácio. Porque Sem-Pernas sabia que se corresse na rua o pegariam com certeza. Eram homens, de pernas maiores que as suas, e além do mais ele era coxo, pouco podia correr. E acima de tudo não queria que o pegassem. Lembrava-se da vez que fora à polícia. Dos sonhos das suas noites más. Não o pegariam e enquanto corre este é o único pensamento que vai com ele. Os guardas vêm nos seus calcanhares. Sem-Pernas sabe que eles gostarão de o pegar, que a captura de um dos Capitães da Areia é uma bela façanha para um guarda. Essa será a sua vingança. Não deixará que o peguem, não tocarão a mão no seu corpo. Sem-Pernas os odeia como odeia a todo mundo, porque nunca pôde ter um carinho. E no dia que o teve foi obrigado ao abandonar porque a vida já o tinha marcado demais. Nunca tivera uma alegria de criança.

Se fizera homem antes dos dez anos para lutar pela mais miserável das vidas: a vida de criança abandonada. Nunca conseguira amar ninguém, a não ser a este cachorro que o segue. Quando os corações das demais crianças ainda estão puros de sentimentos, o do Sem-Pernas já estava cheio de ódio. Odiava a cidade, a vida, os homens.Amava unicamente o seu ódio, sentimento que o fazia forte e corajoso apesar do defeito físico. Uma vez uma mulher foi boa para ele. Mas em verdade não o fora para ele e sim para o filho que perdera e que pensara que tinha voltado. De outra feita outra mulher se deitara com ele numa cama, acariciara seu sexo, se aproveitara dele para colher migalhas do amor que nunca tivera. Nunca, porém, o tinham amado pelo que ele era, menino abandonado, aleijado e triste. Muita gente tinha odiado.E ele odiara a todos. Apanhara na polícia, um homem ria quando o surravam. Para ele é este homem que corre em sua perseguição na figura dos guardas. Se o levarem, o homem rirá novo. Não o levarão. Vêm em seus calcanhares, mas não o levarão. Pensam que elevai parar junto ao grande elevador. Mas Sem-Pernas não para. Sobe para o pequeno muro, volve o rosto para os guardas que ainda correm, ri com toda a força do seu ódio, cospe na cara de um que se aproxima estendendo os braços, se atira de costas no espaço como se fosse um trapezista de circo.

A praça toda fica em suspenso por um momento. Se jogou, diz uma mulher, e desmaia. Sem-Pernas se rebenta na montanha como um trapezista de circo que não tivesse alcançado o outro trapézio. O cachorro late entre as grades do muro.

Capítulo 24 - Notícias de Jornal

O Jornal da Tarde publica um telegrama do rio dando conta do sucesso da exposição de um jovem pintor até então desconhecido. Dias depois transcreve uma crítica de arte publicada também num jornal do Rio de Janeiro. Porque o pintor é baiano, e o Jornal da Tarde é muito cioso das glórias baianas. Um trecho da crítica de arte, após falar das qualidades e defeitos do novo pintor social, de usar e abusar de expressões como clima, luz, cor, ângulos, força e outras mais, diz:... um detalhe notaram todos que foram estranha exposição de cenas e retratos de meninos pobres. É que todos os sentimentos bons estão sempre representados na figura de uma menina magra de cabelos loiros e faces febris. E que todos os sentimentos maus estão representados por um homem de sobretudo negro e um ar de viajante. Que representará para um psicanalista a repetição quase inconsciente destas figuras em todos os quadros? Sabe-se que o pintor João José tem uma história...

E continuava o abuso das palavras cor, força, clima, luz, ângulos e outras mais complicadas.

Meses depois uma notícia informava aos leitores do Jornal da Tarde, sob o título de: "Presente de grego".