- Vocês não conhece os Capitães da Areia.
Aquilo, aquela confiança, impressionara Alberto e alguns outros. Por fim a ideia venceu, não perderiam nada em tentar. Agora está satisfeito de ter vindo. E na sua cabeça já fazia planos para aproveitar na luta os Capitães da Areia. Para quanta coisa não serviriam aqueles meninos esfomeados e mal vestidos? Lembrava-se de outros exemplos, da luta antifascista na Itália, os meninos de Lusso. Sorria para Pedro Bala. Explicou o plano: os furadores de greve viriam pela madrugada para os três grandes depósitos de bondes para tomar conta dos carros. Os Capitães da Areia deviam se dividir em três grupos, guardar as entradas dos três depósitos.E impedir, fosse como fosse, que os furadores de greve conseguissem botar os bondes em marcha. Pedro Bala assentia com a cabeça. Virou para João de Adão: - Se Sem-Pernas tivesse vivo e Gato tivesse aqui...
Depois se lembra de Professor:
- Professor inventava um plano bom num minuto... Depois fazia um desenho da briga. Agora tá no Rio.
- Quem é? - pergunta o estudante.
- Um chamado João José, que a gente tratava de Professor. Agora tá pintando quadro no Rio.
- É o pintor João José?
Esse mesmo - fez Bala.
- Eu sempre pensei que fosse lenda essa história. Sabe que ele é um companheiro bom?
- Sempre foi um companheiro bom disse Pedro Bala com força.
O estudante fazia planos sobre os Capitães da Areia. Agora Pedro Bala acordava todos e explicava o que tinham que fazer. O estudante estava entusiasmado com as palavras do moleque. Quando terminou de explicar, Bala resumiu tudo nestas palavras:
- A greve é a festa dos pobres. Os pobres é tudo companheiro, companheiro da gente.
- Você é um batuta disse o estudante.
- Vai ver como a gente acaba com os traidor.
Explicava a Alberto:
- Eu vou com um grupo pro depósito maior. João Grande vai com outro. Barandão com o terceiro para o menor. Não entra ninguém. A gente sabe fazer. Tu vai ver...
- Eu estarei lá para ver fez o estudante. - Então, às quatro horas da madrugada?
- Tá certo.
O estudante faz um gesto.
- Até logo, companheiros...
Companheiros. Palavra bonita, pensa Pedro Bala. Ninguém dorme mais no trapiche nesta noite. Preparam as mais diversas armas.
Na madrugada que nasce, as estrelas começam a desaparecer do céu. Mas Pedro Bala parece ver numa estrela que corre a estrela de Dora que o alegra. Companheira...Também ela tinha sido uma companheira boa. A palavra brinca na sua boca, é a palavra mais bonita que ele já viu. Pedirá a Boa-Vida que faça um samba dela, um samba para um negro cantar à noite no mar. Vão como se fossem para uma festa. Armados com as mais diversas armas: navalhas, punhais pedaços de pau. Vão para uma festa, porque a greve é a festa dos pobres, repete Pedro Bala para si mesmo.
No pé da ladeira da Montanha se dividem em três grupos. João Grande chefia um, Barandão vai com outro, o maior vai com Pedro Bala. Vão para uma festa. A primeira festa verdadeira que têm aquelas crianças. Ainda assim é uma festa de homens. Mas é uma festa dos pobres, dos pobres como eles.
A madrugada é fria. Na esquina do depósito, quando Pedro Bala está colocando os meninos, Alberto se aproxima dele. Pedro se volta o rosto sorridente. O estudante fala:
- Eles já vêm, companheiro.
- Espera pra ver.
Agora é o estudante quem sorri. Evidentemente está entusiasma do com os meninos. Pedirá à organização para trabalhar com eles. Irão fazer muitas coisas juntos.
Os fura-greves vêm num grupo cerrado. Um americano o chefia com a cara fechada. Se dirigem todos para a entrada. Da sombra, dos becos, ninguém sabe de onde, como demônios fugidos do inferno, surgem meninos esfarrapados e de armas na mão. Punhais, navalhas, paus. Tomam a porta, o grupo dos fura-greves para. Logo os demônios se atiram, é um bolo só. São em número maior que o grupo de fura-greves. Estes rolam com os golpes de capoeira, recebem pauladas, alguns já fogem. Pedro Bala derruba o americano, com a ajuda de outro o soqueia.Os fura-greves pensam que são demônios fugidos do inferno.
A gargalhada livre e grande dos Capitães da Areia ressoa na madrugada. A greve não é furada.
Também João Grande e Barandão são vitoriosos. O estudante ri com eles a gargalhada dos Capitães da Areia.
No trapiche diz para alegria dos meninos:
- Vocês são os mais batutas que eu já vi...
- Companheiros, companheiros diz João de Adão.
Diz o vento que passa, diz a voz do coração de Pedro Bala. É como a música de uma canção cantada por um negro:
- Companheiros.
Capítulo 26 - Os Atabaques Ressoam Como Clarins de Guerra
Depois de terminada a greve o estudante continua a vir ao trapiche.Mantém longas conversas com Pedro Bala, transforma os Capitães da Areia numa brigada de choque.
Uma tarde Pedro Bala vai pela rua Chile, o boné desabado sobre os olhos, assoviando, enquanto arrasta os pés no chão. Uma voz exclama:
- Bala!
Se volta. O Gato está elegantíssimo na sua frente. Uma pérola na gravata, um anel no dedo mínimo, roupa azul, chapéu de feltro quebrado num jeito malandro:
- É tu, Gato?
- Vamos sair daqui.
Entram numa rua sem movimento. Gato explica que chegou de lá. Ilhéus há poucos dias. Que arrancou um bocado de dinheiro de lá. Está um homem e todo perfumado e elegante:
- Quase não te conheço... - diz Pedro Bala. - E Dalva?
- Ficou amigada com um coronel. Mas eu já tinha deixado ela. Agora tenho uma moreninha do balacobaco...
- E aquele anelão que Sem-Pernas fazia troça?..
Gato ri:
- Empurrei por quinhentão num coronel cheio da nota... O bicho engoliu sem gritar...
Conversam e riem. Gato pergunta notícia dos outros. Diz que no dia seguinte embarcará para Aracaju com a morena, pois açúcar está dando dinheiro. Pedro Bala o vê ir embora todo elegante. Pensa que se ele tivesse demorado mais algum tempo no trapiche, talvez não fosse um ladrão. Aprenderia com Alberto, estudante, o que ninguém soubera lhe ensinar. Aquilo que Professor como que adivinhara.
A revolução chama Pedro Bala como Deus chamava Pirulito nas noites do trapiche. É uma voz poderosa dentro dele, poderosa como a voz do mar, como a voz do vento, tão poderosa como uma voz sem comparação. Como a voz de um negro que canta num saveiro o samba que Boa-Vida fez:
"Companheiros, chegou a hora..."
A voz o chama. Uma voz que o alegra, que faz bater seu coração. Ajudar a mudar o destino de todos os pobres. Uma voz que atravessa a cidade, que parece vir dos atabaques que ressoam nas macumbas da religião ilegal dos negros. Uma voz que vem com o ruído dos bondes onde vão os condutores e motorneiros grevistas. Uma voz que vem do cais, do peito dos estivadores, de João de Adão, de seu pai morrendo num comício, dos marinheiros dos navios, dos saveiristas e dos canoeiros. Uma voz que vem do grupo que joga a luta da capoeira, que vem dos golpes que o Querido-de-Deus aplica. Uma voz que vem mesmo do padre José Pedro, padre pobre de olhos espantados diante do destino terrível dos Capitães da Areia. Uma voz que vem das filhas-de-santo do candomblé de Don'Aninha, na noite que a polícia levou Ogum. Voz que vem do trapiche dos Capitães da Areia. Que vem do reformatório e do orfanato. Que vem do ódio do Sem-Pernas se atirando do elevador para não se entregar. Que vem no trem da Leste Brasileira, através do sertão, do grupo de Lampião pedindo justiça para os sertanejos. Que vem de Alberto, o estudante pedindo escolas e liberdade para a cultura. Que vem dos quadros de Professor, onde meninos esfarrapados lutam naquela exposição da rua Chile. Que vem de Boa-Vida e dos malandros da cidade, do bojo dos seus violões, dos sambas tristes que eles cantam. Uma voz que vem de todos os pobres, do peito de todos os pobres. Uma voz que diz uma palavra bonita de solidariedade, de amizade: companheiros. Uma voz que convida para a festa da luta. Que é como um samba alegre de negro, como ressoar dos atabaques nas macumbas. Voz que vem da lembrança de Dora, valente lutadora. Voz que chama Pedro Bala. Como a voz de Deus chamava Pirulito, a voz do ódio o Sem-Pernas, como a voz dos sertanejos chamava Volta Seca para o grupo de Lampião. Voz poderosa como nenhuma outra. Porque é uma voz que chama para lutar por todos, pelo destino de todos, sem exceção. Voz poderosa como nenhuma outra. Voz que atravessa a cidade e vem de todos os lados. Voz que traz com ela uma festa, que faz o inverno acabar lá fora e ser a primavera. A primavera da luta. Voz que chama Pedro Bala, que o leva para a luta. Voz que vem de todos os peitos esfomeados da cidade, de todos os peitos explorados da cidade. Voz que traz o bem maior do mundo, bem que é igual ao sol, mesmo maior que o soclass="underline" a liberdade. A cidade no dia de primavera é deslumbradoramente bela. Uma voz de mulher canta a canção da Bahia. Canção da beleza da Bahia. Cidade negra e velha, sinos de igreja, ruas calçadas de pedra. Canção da Bahia que uma mulher canta. Dentro de Pedro Bala uma voz o chama: voz que traz para a canção da Bahia, a canção da liberdade. Voz poderosa que o chama. Voz de toda a cidade pobre da Bahia, voz da liberdade. A revolução chama Pedro Bala.