- Agora não que vou mijar... - e foi para os fundos do bar.
O Querido-de-Deus ficou perdendo. João Grande ria e o capoeirista se afundava. Pedro Bala tinha voltado, mas não jogava. Ria com João Grande, O Querido-de-Deus passou tudo quanto tinha ganho. João Grande disse entre dentes:
- Vai entrar no capital...
- Ainda tou perdendo - falou o Gato.
Reparou que Pedro tinha voltado:
- Tu não arrisca mais nada? Não vai na dama?
- Tou cansado de jogar... - e Pedro Bala piscou para o Gato como que dizendo que ele se contentasse com o Querido-de-Deus.
O Querido-de-Deus passou cinco mil-réis do capital. Só ganhara duas vezes durante as últimas jogadas e estava meio desconfiado. O Gato abriu o baralho na mesa.Puxou um rei e um sete.
- Quem vai? - perguntou.
Ninguém foi. Nem mesmo o Querido-de-Deus, que olhava o ar baralho muito desconfiado. O Gato perguntou:
- Tá pensando que tem treita? Pode espiar. Eu faço jogo limpo...
João Grande soltou uma daquelas suas gargalhadas escandalosas. Pedro Bala e o Querido-de-Deus riram também. O Gato olhou para João Grande com raiva:
- Esse negro é burra como uma porta. Tu não tá vendo...Mas não completou a frase, porque os dois marinheiros baiano, que já miravam o jogo há bastante tempo, se aproximaram. Um deles, o mais baixo, que estava bêbado, falou para o Querido-de-Deus:
- Pode-se entrar nesta brincadeira?
- A banca é deste moço.
Os marinheiros olharam desconfiados para o menino. Mas baixo cutucou o outro com o cotovelo e murmurou qualquer coisa ao ouvido. O Gato riu para dentro porque sabia que ele estava dizendo que seria fácil arrancar o dinheiro daquela criança. Se abancaram os dois e o Querido-de-Deus achou estranho que Pedro Bala se abancasse também. João Grande, no entanto, não só não achou estranho se abancou também. Ele sabia que era preciso tapear os marinheiros e então era necessário que a gente do grupo perdesse também. Os marinheiros, do mesmo modo que tinha acontecido com o Querido-de-Deus, começaram ganhando. Mas durou pouca a aragem da sorte e em breve só o Gato ganhava dos quatro. Pedro Bala soltava aclamações:
- Esse Gato quando tem sorte é um caso sério...
- Também, quando dá de perder, perde a noite toda - replicou João Grande e esta sua réplica deu grande confiança aos marinheiros sobre a honestidade do jogo e a possibilidade da sorte virar. E continuaram a jogar e a perder. O baixo só dizia:
- A sorte tem de virar...
O outro, que tinha um bigodinho, jogava calado e cada vez apostava mais alto. Também Pedro Bala subia o valor das suas apostas. Certa hora o de bigodinho virou pro Gato:
- A banca topa cinco mil?
O Gato coçou o cabelo cheio de brilhantina barata, aparentando uma indecisão que os companheiros sabiam que não possuía.
Vá lá. Topo. Só pra dar meio de você livrar teu prejuízo.
O de bigodinho apostou cinco mil. O baixo foi com três mil-réis. Foram ambos num ás contra um valete da banca. Pedro Bala e João Grande foram no ás também. O Gato começou a virar as cartas. A primeira era um nove. O baixo batia com os dedos, o outro puxava o bigodinho. Veio em seguida um dois e o baixo disse:
- Agora é o ás. Dois, depois um... - e batia com os dedos.
Mas veio um sete e depois um dez e então veio um valete. O Gato arrastou a mesa, enquanto Pedro Bala fazia uma cara de grande aborrecimento e dizia:
- Amanhã, quando o peso te pegar, tu vai ver que te arraso.
O baixo confessou que estava limpo. O de bigodinho meteu as mãos nos bolsos:
- Tou só com os níqueis pra pagar a cerveja. O garoto é um braço.
Se levantaram, cumprimentaram o grupo, pagaram a cerveja que tinham bebido na outra mesa. O Gato os convidou a voltarem no outro dia. O baixo respondeu que o navio deles saía aquela noite para Caravelas. Só quando voltasse. E se foram, de braço dado, comentando a pouca sorte.
O Gato contou o lucro. Sem juntar o dinheiro que Pedro Bala e João Grande haviam perdido, existia um lucro de trinta e oito mil-réis. O Gato devolveu o dinheiro de Pedro Bala, depois o de João Grande, ficou um minuto pensando. Meteu a mão no bolso, tirou os cinco mil réis que o Querido-de-Deus havia perdido anteriormente:
- Toma, batuta. Tinha trapaça, eu não quero embolsar teu cobre...
O Querido-de-Deus beijou a nota com satisfação, bateu a mão nas costas do Gato:
- Tu vai longe, menino. Tu pode enricar com essas treitas.
Mas já o sol se punha e o homem não vinha. Eles pediram outra pinga. Com o cair da tarde o vento que vinha do mar aumentou. O Querido-de-Deus começava a ficar impaciente. Fumava cigarro sobre cigarro. Pedro Bala espiava para a porta. O Gato dividiu os trinta e oito mil-réis pelos três. João Grande perguntou:
- Como teria ido o Sem-Pernas com o abafa de chapéus?
Ninguém respondeu. Esperavam o homem e agora tinham a impressão que ele não viria. A informação tinha sido errada. Não ouviam sequer a canção que vinha do mar.A Porta do Mar estava deserta e seu Felipe quase dormia no balcão. Não tardaria, no entanto, a estar cheia, e então todo acerto seria impossível com o homem. Ele não haveria de querer conversar ali com o salão cheio. Poderiam conhecê-lo, e ele não queria isto. Tampouco o queriam os Capitães da Areia. Em verdade, o Gato não sabia de que se tratava. E pouco má sabiam Pedro Bala e João Grande. Sabiam quanto sabia o Querido-de-Deus, a quem o negócio tinha sido proposto e que o tinha aceito para Pedro Bala e os Capitães da Areia. No entanto, ele mesmo tinha apenas vagas informações e iam saber de tudo pelo homem que marcara uma entrevista à tarde na Porta do Mar. Mas até as seis horas não chegou. Em lugar dele chegou o tal que tinha falado ao Querido-de-Deus. Chegou na hora em que o grupo ia sair. Explicou que homem não tinha podido vir. Mas que esperava o Querido-de-Deus à noite, na rua em que morava. Viria por volta de uma da madrugada O Querido-de-Deus declarou que não podia ir, mas que entregava o assunto aos Capitães da Areia. O intermediário mirou os meninos, desconfiado. O Querido-de-Deus perguntou: - Nunca ouviu falar nos Capitães da Areia?
- Já, sim. Mas...
- De qualquer jeito quem ia tratar do negócio era eles. Daí...
O intermediário pareceu se conformar. Combinaram pan um da manha e se separaram. O Querido-de-Deus foi para seu barco, os Capitães da Areia para o trapiche, o intermediário desapareceu no cais.
O Sem-Pernas não havia ainda voltado. Não havia ninguém no trapiche. Deviam estar todos espalhados pelas ruas da cidade, cavando o jantar. Os três saíram novamente e foram comer num restaurante barato que havia no mercado. Na saída do trapiche, o Gato, que estava muito alegre com o resultado do jogo, quis passar uma rasteira em Pedro Bala. Mas este livrou o corpo e derrubou o Gato:
- Tou treinado nisso, bestão.
Entraram no restaurante fazendo barulho. Um velho, que era o garçom, se aproximou com desconfiança. Sabia que os Capitães da Areia não gostavam de pagar e que aquele de talho na cara era o mais temível de todos. Apesar de haver bastante gente no restaurante, o velho disse:
- Acabou tudo. Não tem mais boia.
Pedro Bala replicou:
- Deixa de conversa fiada, meu tio. Nós quer comer.
João Grande bateu a mão na mesa:
- Senão a gente vira esse frege-mosca de cabeça pra baixo.
O velho ficava indeciso. Então o Gato bateu o dinheiro em cima da mesa:
- Hoje nós vai fazer gasto.
Foi um argumento suficiente. O garçom começou a trazer os pratos: um prato de sarapatel e depois uma feijoada. Quem pagou foi o Gato. Depois Pedro Bala propôs que fossem andando até Brotas, pois já que iam a pé tinham muito que caminhar.
- Não vale a pena tomar a taioba - disse Pedro Bala. - É melhor que ninguém saiba que a gente foi pra lá.