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— Livro? — Grey riu de novo, espicaçando-o. — Conte a eles, pela sua honra de cavalheiro, pela honra de seu pai, pela honra de sua família, de que você tem um danado dum orgulho tão grande... o Rei roubava ou não? Pela sua honra, hem?

Quase paralisada, Casey viu Peter Marlowe cerrar o punho.

— Se não houvesse convidados aqui — sibilou ele —, eu lhes contaria que exibido você realmente era!

— Pode apodrecer no inferno...

— Agora, chega — disse Gornt, em tom imperativo, e Casey recomeçou a respirar. — Pela última vez, vamos fazer a gentileza de mudar de assunto!

Grey afastou o olhar de Marlowe com relutância.

— É o que vou fazer. Posso arranjar um táxi na aldeia? Acho que prefiro ir para casa no bloco do eu sozinho, se não se importam.

— Naturalmente — disse Gornt, o rosto adequadamente solene, encantado por Grey ter tido a idéia ele mesmo, para que não tivesse que insinuá-la abertamente. — Mas sem dúvida — acrescentou, dando o golpe de misericórdia —, sem dúvida você e o Marlowe podiam apertar as mãos, como cavalheiros, e esquecer tudo o...

— Cavalheiros? Ora, de jeito nenhum. Já me enchi para sempre de cavalheiros como o Marlowe. Cavalheiros? Graças a Deus a Inglaterra está mudando, e logo estará de novo nas mãos certas... e o sotaque muito britânico de Oxford não será um passaporte permanente para a nobreza e o poder, nunca mais. Vamos endireitar a Câmara dos Lordes, e se as coisas saírem como eu quero...

— Esperemos que não! — disse Pugmire. Gornt falou com firmeza:

— Pug! Está na hora do café e do porto! — Afavelmente, tomou o braço de Grey. — Se nos derem licença um minu-tinho...

Foram para o convés. A tagarelice das garotas chinesas parou um momento. Secretamente satisfeitíssimo consigo mesmo, Gornt levou o outro pela escada do costado até o cais. Tudo estava saindo melhor do que a encomenda.

— Lamento o que houve, sr. Grey — falou. — Não tinha a menor idéia de que Marlowe... Revoltante! Bem, nunca se sabe, não é mesmo?

— Ele é um filho da mãe, sempre foi e sempre será... ele e o nojento amigo ianque dele. Também odeio os ianques! Já está na hora de rompermos com esses exibidos!

Gornt achou um táxi com facilidade.

— Sr. Grey, tem certeza de que não quer mudar de idéia?

— Não, não, obrigado.

— Lamento sobre o Marlowe. É evidente que o senhor foi provocado. Quando o senhor e sua delegação comercial vão partir?

— Amanhã cedinho.

— Se houver algo que possa fazer aqui pelo senhor, basta me avisar.

— Está bem. Quando chegar a casa, ligue-me.

— Obrigado. É o que farei, e mais uma vez agradeço-lhe por ter vindo.

Pagou a corrida adiantado e acenou cortesmente enquanto o táxi se afastava. Grey nem olhou para trás.

Gornt sorriu. "Esse filho da mãe nojento vai ser um aliado útil nos anos futuros", riu consigo mesmo, enquanto voltava para o barco.

A maioria dos outros estava na coberta, tomando café e licores, Casey e Peter Marlowe um pouco afastados.

— Mas que sujeito cretino! — exclamou Gornt, ante a concordância geral. — Lamento muitíssimo o que houve, Marlowe, o sacana provo...

— Não, a culpa foi minha — disse Peter Marlowe, evidentemente muito abalado. — Desculpe. Sinto-me péssimo por ele ter ido embora.

— Não precisa pedir desculpas. Eu não devia tê-lo convidado ... obrigado por ter sido tão cavalheiro. É óbvio que ele o provocou.

— Sem dúvida — falou Pugmire, ante nova concordância de todos. — Se eu fosse você, teria lhe dado um murro. O que aconteceu é passado.

— É, sim — disse Casey, rapidamente —, que homem horrível! Se você não tivesse encerrado o assunto, Quillan, Grey teria...

— Chega de falar naquele cretino — disse Gornt, calorosamente, querendo deixar o espectro descansar. — Vamos esquecê-lo e não deixar que estrague uma tarde maravilhosa. — Deu um abraço em Casey. — Certo? — Notou a admiração nos olhos dela e sentiu, com alegria, que estava chegando depressa aonde queria. — Está frio demais para nadar. Que tal navegarmos devagarinho de volta para casa?

— Ótima idéia! — disse Dunstan Barre. — Acho que vou tirar uma sesta.

— Que idéia espetacular! — concordou outro, em meio às risadas. As garotas também riram, mas o riso era forçado. Todos ainda estavam abalados, e Gornt pôde notá-lo muito bem.

— Primeiro um pouco de conhaque! Marlowe?

— Não, obrigado, sr. Gornt. Gornt olhou atentamente para ele.

— Escute o que vou dizer, Marlowe — falou, com compaixão genuína, e todos se calaram. — Todos nós já vimos coisas demais na vida, coisas demais na Ásia, para não sabermos que, seja Iá o que você tenha feito, foi para o bem, não para o mal. O que você falou é certo. Changi foi especial, com problemas especiais. Pug ficou trancafiado na Prisão Stanley... fica na ilha de Hong Kong, Casey... por três anos e meio. Eu saí de Xangai quase que com a pele do corpo, e sangue nas mãos. Jason foi agarrado pelos nazistas depois de Dunquer-que e passou dois anos difíceis com eles. Dunstan operou na China... Dunstan sempre esteve na Ásia, e também sabe. Não é?

— Ah, é — falou Dunstan Barre, com tristeza. — Casey, na guerra, para sobreviver, a gente tem que fazer vista grossa para algumas coisas. Quanto ao comércio, Marlowe, concordo que, na maioria das vezes, é preciso equiparar o problema ao local e à hora. Agradeço a Deus nunca ter sido preso. Não creio que teria sobrevivido, sei que não teria.

Serviu-se de mais porto da garrafa, encabulado por estar revelando verdades reais.

— Conte como realmente foi Changi, Peter — pediu Casey, por todos eles.

— É difícil falar a respeito — replicou ele. — Era a coisa mais próxima de uma não-vida que se possa imaginar. A nossa ração era de duzentos e cinqüenta gramas de arroz seco por dia, alguns legumes, um ovo por semana. Às vezes... agitavam um pedaço de carne por cima da sopa. Era diferente, é só o que posso dizer a respeito. A maioria de nós jamais vira uma selva antes, que dirá chineses e japoneses, e perder uma guerra... eu tinha apenas dezoito anos quando Changi começou.

— Santo Deus, não suporto aqueles amarelos japoneses, simplesmente não suporto! — exclamou Pugmire, e os outros concordaram.

— Mas isso não é justo, na verdade. Eles apenas jogavam segundo as regras do jogo deles — disse Peter Marlowe. — Isso era justo do ponto de vista japonês. Vejam que soldados maravilhosos eles foram, vejam como lutaram e quase nunca se permitiram ser capturados. Segundo os padrões deles, nós nos desonramos nos rendendo. — Peter Marlowe estremeceu. — Eu me senti desonrado, ainda me sinto desonrado.

— Não tem razão, Marlowe — disse Gornt. — Não há desonra nisso. Nenhuma.

Casey, de pé ao lado de Gornt, pôs a mão de leve no braço dele.

— É, sim. Ele tem razão, Peter. Toda a razão.

— É — falou Dunstan Barre. — Mas o Grey, que diabo descontrolou o Grey daquele jeito, hem?

— Nada e tudo. Virou um fanático, fazendo com que se cumprissem as regras do campo, que eram regras japonesas, o que era uma estupidez, na opinião de muitos de nós. Como já disse, Changi era diferente, oficiais e soldados trancafiados juntos, sem cartas de casa, sem comida, cercados por três mil e duzentos quilômetros de território ocupado pelo inimigo, malária, disenteria, e com um índice de mortalidade terrível. Ele odiava esse meu amigo americano, o Rei. É verdade que o Rei era um negociante astuto, e que comia bem enquanto outros não comiam, bebia café e fumava cigarros já enrolados. Mas manteve muitos de nós vivos com a sua habilidade. Até mesmo o Grey. Manteve até o Grey vivo. Foi o ódio do Grey que o manteve vivo, estou certo disso. O Rei alimentava quase todo o contingente americano... havia uns trinta deles, entre oficiais e soldados. Ah, eles tinham que trabalhar em troca, à moda americana, mas, mesmo assim, sem ele teriam morrido. Eu teria, eu sei. — Peter Marlowe estremeceu. — Joss. Carma. Vida. Acho que agora vou aceitar aquele conhaque, sr. Gornt. Gornt o serviu.