Crosse olhou-o fixamente.
— Deve estar brincando! Quer que mande o Arthur para a Terra dos Pés Juntos?
— Foi você mesmo que disse, é o pescoço de alguém. Ouça, no momento só estamos examinando as possibilidades.
Mas é uma verdade que você é imprescindível. Arthur não é. Nem os outros. Nem eu — falou Suslev, com sinceridade. — Portanto, aconteça o que acontecer, não pode ser você... e de preferência não eu. Nunca me agradou a idéia de morrer. — Tomou outro gole da vodca e sentiu a sensação gostosa a aquecer-lhe o estômago, depois voltou a fitar o seu aliado. — Você é um aliado, não é?
— Sim, claro que sim. Enquanto o dinheiro continuar entrando e eu curtindo o jogo.
— Se você acreditasse, viveria uma vida mais longa e melhor, továrich.
— A única coisa que me mantém vivo é não acreditar. Você e seus amigos do KGB podem tentar até conseguir dominar o mundo, infiltrar o capitalismo e qualquer outro "ismo" que desejarem, por qualquer propósito que admitam, ou que lhes agrade, e nesse meio tempo, eu só vou levando!
— O que quer dizer com isso?
— É uma expressão que significa "ajudar" — disse Crosse, secamente. — Como é? Vai entregar o Arthur?
— Não sei. Poderia lançar uma pista falsa até o aeroporto para nos dar tempo de fugir das águas de Hong Kong?
— Sim, mas Sinders já redobrou a vigilância Iá.
— E quanto a Macau?
— Poderia fazer isso. Mas não gosto. E quanto aos outros da Sevrin?
— Eles que se entoquem mais fundo. Vamos fechar tudo. Você assume a Sevrin, e nós a ativamos de novo depois que a tempestade passar. Será que o De Ville poderá vir a ser o tai-pan, depois de Dunross?
— Não sei. Acho que será o Gavallan. A propósito, mais duas vítimas dos Lobisomens foram encontradas em Sha Tin, hoje de manhã.
A esperança de Suslev aumentou, e um pouco do seu temor o abandonou.
— O que aconteceu?
Crosse contou-lhe como tinham sido encontrados.
— Ainda estamos tentando identificar os desgraçados. Grigóri, entregar o Arthur é arriscado, aconteça o que acontecer. Poderia entornar o caldo para o meu lado. Talvez com a queda da Bolsa, os bancos numa pior e Dunross sumindo, pudesse haver uma cobertura suficiente. Talvez.
Suslev balançou a cabeça. Sua náusea aumentou. A decisão tinha que ser tomada.
— Roger, não vou fazer nada. Simplesmente vou me mandar, e arriscar. Farei um relatório particular para me antecipar ao Sinders, e contarei ao Centro o que aconteceu. Faça o Sinders o que fizer, bem, isso pertence ao futuro. Também tenho amigos em posições influentes. Talvez o desastre de Hong Kong, e o aprisionamento de Dunross... eu mesmo farei o interrogatório com as substâncias químicas, de qualquer maneira, para o caso de estar nos tapeando e ser tão esperto quanto você diz que é... o que foi?
— Nada. E quanto ao Koronski?
— Partiu hoje de manhã, depois de ter me dado todas as substâncias químicas. Reprogramei o interrogatório para ser feito a bordo do Ivánov, e não em terra. Por quê?
— Por nada. Continue.
— Talvez a débâcle de Hong Kong apazigue os meus superiores. — Agora que havia tomado a decisão, sentia-se um pouco melhor. — Envie um relatório urgente para o Centro através dos canais de costume, para Berlim. Mande o Arthur fazer o mesmo hoje à noite, por rádio. Façam o relatório a meu favor, certo? Culpem a CIA daqui pelo caso Metkin, e Voranski pelo caso do "vazamento" do porta-aviões. Certo? Culpem a CIA e o Kuomintang.
— Sem dúvida. Por um preço dobrado. A propósito, Grigóri, se eu fosse você, limparia as minhas digitais desta garrafa.
— Hem?
Zombeteiramente, Crosse contou-lhe que Rosemont apanhara o copo na batida, e que, havia meses, para proteger Suslev, ele extraíra as impressões dele do seu dossiê.
O russo estava branco.
— A CIA tem as minhas impressões digitais no seu arquivo?
— Apenas se tiverem um dossiê melhor do que o nosso. E disso eu duvido.
— Roger, espero que você cubra a minha retaguarda.
— Não se preocupe. Vou enfeitar tanto o relatório, que o promoverão. Em troca, você recomendará a minha gratificação de cem mil dó...
— É demais!
— O preço é esse! Estou tirando você de uma confusão dos diabos. — A boca sorriu, mas os olhos, não. — É uma sorte sermos profissionais, não é?
— Eu... vou tentar.
— Ótimo. Espere aqui. O telefone do Clinker está censurado. Vou ligar do apartamento do Jason tão logo saiba do Dunross. — Crosse estendeu a mão. — Boa sorte, farei o que puder com o Sinders.
— Obrigado. — Suslev deu-lhe um abraço apertado. — Boa sorte para você também, Roger. Não falhem com o Dunross.
— Não falharemos.
— E continue com o bom trabalho, certo?
— Diga aos seus amigos que continuem mandando o dinheiro. Certo?
— Sim.
Suslev fechou a porta às costas de Crosse, depois enxugou as palmas das mãos nas calças e pegou o rolo de filme. Xingou-o baixinho, e a Dunross, Hong Kong e Sinders, o fantasma do KGB interrogando-o sobre Metkin a dominá-lo. "Tenho que dar um jeito de evitar isso", falou consigo mesmo, o suor frio escorrendo-lhe pelas costas. "Talvez eu deva mesmo entregar o Arthur, afinal de contas. Como fazer isso, sem implicar o Roger? Tem que haver um jeito."
No patamar, Roger Crosse entrou no elevador e apertou o botão do térreo. Agora sozinho, apoiou-se exausto contra as paredes oscilantes e sacudiu a cabeça para tentar afastar o medo.
— Pare com isso! — murmurou. Dominou-se com esforço, e acendeu um cigarro, notando que seus dedos tremiam. "Se aquele sacana interrogar Dunross quimicamente, estou liquidado. E aposto cinqüenta dólares contra um monte de bosta que Suslev ainda não descartou a possibilidade de entregar o Plumm. E se ele fizer isso, porra, todo o meu castelo de cartas pode desabar sobre a minha cabeça. Um erro, um mínimo deslize, e estou acabado."
O elevador parou. Alguns chineses entraram ruidosamente, mas ele nem os notou.
No térreo, Rosemont o esperava.
— Então?
— Nada, Stanley.
— Você e seus palpites, Rog.
— Nunca se sabe, Stanley, podia ter havido alguma coisa — disse Crosse, tentando pôr a cabeça para funcionar. Inventara o palpite e trouxera Rosemont consigo — para esperar Iá embaixo —, apenas para despistar os homens da CIA de Rosemont que ele sabia estarem ainda vigiando o saguão.
— Você está bem, Rog?
— Estou, sim. Obrigado. Por quê? Rosemont deu de ombros.
— Quer um café ou uma cerveja?
Saíram para dentro da noite. O carro de Rosemont esperava Iá fora.
— Não, obrigado. Estou indo para Iá. — Crosse apontou para o Rose Court, o prédio alto que se erguia acima deles, na rua de cima. — É um coquetel a que tenho que ir por obrigação social.
Sentiu o medo subir-lhe pelo peito, de novo. "Porra, o que faço agora?"
— O que há, Rog?
— Nada.
— Rose Court, hem? Talvez eu devesse arrumar um apartamento Iá. Rosemont de Rose Court.
— É. — Crosse reuniu suas forças. — Quer vir até as docas ver o Ivánov zarpar?
— Claro, por que não? Ainda bem que você mandou aquele filho da mãe se arrancar. — Rosemont abafou um bocejo. — Conseguimos dobrar o sacana do computador hoje. Parece que ele tem todo tipo de segredos guardados.
— Quais?
— Diversas coisinhas sobre o Corregidor, sua velocidade máxima, de onde vêm suas armas nucleares, seu código de armamento, esse tipo de coisa. Conto-lhe tudo logo mais. Você me apanha à meia-noite, tá legal?
— Sim, sim, claro.
Crosse virou-se e afastou-se rapidamente. Rosemont acompanhou-o com o olhar, de testa franzida, depois ergueu os olhos para o Rose Court. Todos os doze andares estavam iluminados. Novamente, o americano voltou a olhar para Crosse, agora uma pequena figura na escuridão, enquanto dobrava a esquina, subindo a rua íngreme e sinuosa.