Mais feliz e confiante do que se sentia havia anos, entrou no banheiro, achou uma navalha e um pincel de barba, enquanto cantarolava uma música dos Beatles, junto com o rádio. "Talvez eu deva requerer uma colocação no Canadá. O Canadá não é uma das nossas posições mais importantes e vitais... equiparando-se ao México em importância?"
Sorriu amplamente para a sua imagem no espelho. Novos lugares para onde ir, novas missões a cumprir, um novo nome e promoção, quando algumas horas antes via apenas o desastre à sua frente. "Talvez leve a Vertinskaia comigo para Ottawa."
Começou a se barbear. Quando Boradinov voltou com a permissão policial para adiar a partida, mal reconheceu Grigóri Suslev sem o bigode e a barba.
85
23h40m
Bartlett estava a seis metros sob uma cama-de-gato de vigas que impediam que os escombros o esmagassem. Quando a avalancha o atingira, fazia quase três horas, ele estava de pé na porta da cozinha, bebericando uma cerveja supergelada e fitando a cidade. Tinha tomado banho, acabara de se vestir, e sentia-se ótimo, à espera de que Orlanda voltasse. E então, de repente, estava caindo, o mundo inteiro errado, fantástico, o chão vindo ao seu encontro, as estrelas Iá embaixo, a cidade em cima. Tinha havido uma explosão cegante, monstruosa, silenciosa, e todo o ar fora expulso de dentro dele, que caíra naquela cova para sempre.
A volta à consciência fora um longo processo para ele. Estava escuro, na sua tumba, e ele sentia dores pelo corpo todo. Não conseguia imaginar o que acontecera nem onde estava. Quando despertou de vez, olhou ao seu redor tentando enxergar onde estava, as mãos tocando coisas que não compreendia. A escuridão o deixava nauseado, e ele se pôs de pé, em pânico, batendo a cabeça contra um pedaço de concreto saliente que fizera parte da parede externa, e caiu de costas, atordoado, sendo protegido na queda pelo que restava de uma poltrona. Dali a pouco sua mente clareou, mas a cabeça lhe doía, os braços lhe doíam, o corpo lhe doía. Os números fosforescentes do seu relógio de pulso chamaram sua atenção. Olhou para eles. Marcavam vinte e três horas e quarenta minutos.
"Lembro-me... do que me lembro?"
— Qual é, puta que o pariu! — resmungou —, ande com isso! Controle-se. Onde diabo eu estava? — Seus olhos percorreram a escuridão com horror crescente. Formas vagas de vigas, concreto quebrado e os restos de uma sala. Pouco podia ver e nada reconhecia. A luz que vinha de algum lugar rebrilhou numa superfície lustrosa. Era um forno destruído. Sua memória voltou de roldão. — Eu estava na cozinha — exclamou, em voz alta. — É isso, e Orlanda tinha acabado de sair, fazia uma hora, não, menos, meia hora. Então deviam ser umas nove, quando... quando aconteceu aquilo, seja Iá o que for. Foi um terremoto? Ou o quê?
Cuidadosamente, tateou os membros, o rosto, uma pontada de dor no ombro direito cada vez que se movia.
— Merda! — murmurou, sabendo que estava deslocado. O rosto e o nariz estavam ardendo e feridos. Tinha dificuldade em respirar. Todo o resto parecia estar funcionando, embora cada junta parecesse ter sido estirada num instrumento de tortura e a cabeça lhe doesse terrivelmente. — Você está legal, pode respirar, pode enxergar, pode... — Interrompeu-se, tateou ao seu redor, achou um pedacinho de entulho, ergueu a mão com cuidado, depois largou-o. Ouviu o ruído que o entulho fez ao cair, e seu coração bateu mais forte. — E pode ouvir. Bem, mas que diabo aconteceu? Meu Deus, é como aquela vez em Iwo Jima!
Recostou-se para conservar as forças.
— Isso é o que têm a fazer — o velho primeiro-sargento lhes dissera —, recostem-se e fiquem de papo pro ar se forem apanhados numa escavação ou soterrados por uma bomba. Primeiro certifiquem-se de que podem respirar direitinho. Depois cavem um buraco, mas respirem do jeito que puderem. É a primeira coisa a fazer. Depois testem os membros e a audição. Porra, é claro que já saberão que podem enxergar! Mas depois recostem-se e controlem-se, e não entrem em pânico. O pânico os matará. Já desenterrei caras depois de quatro dias, e pareciam uns porquinhos num monte de merda. Contanto que possam respirar, ver e ouvir, poderão viver uma semana, fácil. Porra, quatro dias é fichinha. Mas outros caras que a gente desenterrava em uma hora tinham-se afogado em lama, bosta ou no seu próprio vômito de pavor, ou esmagado a cabeça baten-do-a contra um pedaço de ferro quando a gente estava a poucos metros dos imbecis, e se eles tivessem ficado deitadinhos como eu falei, na maciota, de papo pro ar, teriam nos ouvido e teriam gritado. Merda! Qualquer um de vocês, seus filhos da mãe, que entrar em pânico quando estiver soterrado, pode se considerar um homem morto. Claro. Só eu já estive soterrado cinqüenta vezes. Sem pânico!
— Sem pânico, sim, senhor — disse Bartlett, em voz alta, e sentiu-se melhor, abençoando o sujeito. Certa vez, durante a época difícil de Iwo Jima, o hangar que ele construíra fora bombardeado e explodira, e ele ficara soterrado. Quando tirara a terra dos olhos, da boca e dos ouvidos, o pânico o dominara. Ele se arremessara contra a tumba, e depois se lembrara: Não entre em pânico, e se forçara a parar. Descobrira-se tremendo como um cachorro amedrontado ante a ameaça de uma surra, mas dominara o terror. Depois que o terror passara, ele estava inteiro, olhara ao seu redor com cuidado. O bombardeio fora durante o dia, portanto ele podia enxergar bem. Então percebera o começo de uma saída. Mas esperara, cautelosamente, lembrando-se das instruções. Dali a pouco ouvira vozes. Chamara, tomando cuidado para não perder a voz.
— Esta é outra coisa danada de óbvia, não percam a voz, tá? Não gritem até ficar roucos da primeira vez que ouvirem que o socorro está perto. Sejam pacientes. Porra! Alguns caras que conheci ficaram tão roucos berrando que estavam mudi-nhos da silva quando a gente chegou perto, e os perdemos. Enfiem isso em suas malditas cabeças, temos que ter ajuda para encontrá-los. Não entrem em pânico! Se não puderem gritar, batam, usem qualquer coisa, façam qualquer tipo de barulho, mas dêem-nos um sinal e nós os tiraremos fora, contanto que vocês possam respirar... uma semana é fácil, sem grilos. De qualquer modo, bem que vocês estão precisando fazer dieta, seus filhos da mãe...
Agora, Bartlett estava usando todas as suas faculdades. Podia ouvir os escombros mudando de posição. Pingava água por perto, mas nenhum sinal de pessoas. Depois, muito de longe, uma sirene de polícia que sumiu. Reconfortado pela possibilidade de ajuda a caminho, esperou. O coração estava controlado. Recostou-se e abençoou aquele velho primeiro-sar-gento. Seu nome era Spurgeon, Spurgeon Roach, e era negro.
"Deve ter sido um terremoto", pensou. "Será que o prédio inteiro desabou, ou foi apenas o nosso andar e o de cima? Quem sabe um avião nos atingiu e... Pombas, não, eu teria ouvido o barulho se aproximando. É impossível um prédio desabar, não com os regulamentos de construção. Mas estamos em Hong Kong, e ouvi dizer que alguns construtores nem sempre obedecem aos regulamentos, tapeiam um pouco, não usam aço ou concreto de primeira. Porra, se eu sair, não, quando eu sair..."
Essa era outra regra inviolável do velho.
— Nunca se esqueçam, enquanto puderem respirar, vocês sairão, sairão...
"Claro. Quando eu sair vou achar o velho Spurgeon e agradecer-lhe condignamente, e depois vou processar alguém até tirar-lhe as calças. Casey, sem dúvida... ah, Casey, puxa, como estou feliz por ela não estar metida nesta merda, nem a Orlanda. As duas... Meu Deus, será que Orlanda ficou presa quando..."