Mathis sentou-se na cama e abriu um maço de Caporal com a unha do polegar. Bond esperou.
Mathis estava satisfeitíssimo com a sensação que suas palavras haviam provocado. Tornou-se sério.
"Como aconteceu, não sei. Eles devem ter recebido notícias a seu respeito muitos dias antes de você chegar. A oposição está muito bem organizada aqui em Royale. Em cima de você, encontra-se a família Muntz. Ele é alemão. Ela é de algum lugar da Europa Central, talvez tcheca. Este hotel é antigo. Existem chaminés fora de uso atrás desses aquecedores elétricos. E bem aqui", apontou um pouco acima do painel elétrico, "há um poderoso receptor de rádio. Os fios sobem pela chaminé até atrás do aquecedor elétrico dos Muntz, onde há um amplificador. No quarto deles, há um gravador e um par de fones nos quais os Muntz ouvem tudo o que se passa aqui, revezando-se de tempos em tempos. É por isso que Madame Muntz está gripada e toma todas as refeições na cama e é por isso que Monsieur Muntz tem de estar constantemente ao lado dela, em lugar de aproveitar o sol e as mesas de jogo deste recanto encantador".
"Algumas destas coisas nós descobrimos porque na França somos muito espertos. O resto confirmamos desmontando este seu aquecedor elétrico algumas horas antes de você chegar".
Desconfiado, Bond levantou-se e foi examinar os parafusos que seguravam o painel na parede. Notou minúsculos arranhões.
"Está na hora de fazer um pouco mais de teatro", disse Mathis. Dirigiu-se ao aparelho de rádio que ainda estava transmitindo música para aquele pequeno auditório de três pessoas e desligou-o.
"Está satisfeito, cavalheiro?" — perguntou. "Notou como a transmissão é clara? Eles cantam muito bem, não?" Fez um gesto de brincadeira com a mão direita e levantou as sobrancelhas.
"Eles são tão bons", respondeu Bond, "que eu gostaria de ouvir o resto do programa". E sorriu ao pensar nos olhares furiosos que os Muntz estariam trocando lá em cima. "O aparelho parece esplêndido. É exatamente o que eu estava querendo levar comigo para a Jamaica".
Mathis Fez uma careta sarcástica e ligou outra vez o programa de Roma. "Você e a sua Jamaica", disse Ele sentando-se outra vez na cama.
Bond devolveu a careta. "Bem, agora não adianta reclamar", disse Ele "Não esperávamos que o disfarce pegasse por muito tempo, mas o que me preocupa é que eles descobriram cedo demais". Como teria isso sido possível? Será que os russos haviam decifrado um dos nossos códigos? Em caso afirmativo, o melhor que Ele tinha a fazer era arrumar as malas e voltar para Londres. Tanto Ele quanto seu trabalho teriam sido descobertos.
Mathis pareceu Ler os pensamentos de Bond. "'Não pode ter sido um código", disse Ele. "De qualquer maneira, comunicamos imediatamente a Londres e eles já o terão modificado. Posso dizer a você que causamos um grande movimento". Sorriu com a mesma satisfação de um amigo rival. "E agora vamos ao que interessa, antes que os nossos amigos aí no rádio percam o fôlego.
"Antes de mais nada" — deu uma boa tragada no seu Caporal — "você ficará contentíssimo com a pessoa que foi designada para auxiliá-lo. Ela é linda (Bond franziu a testa), realmente linda". Contente com a reação de Bond, Mathis prosseguiu: "Bem morena, olhos azuis e magnificamente. . . ahn... protuberante. Na frente e atrás", acrescentou. "E é uma perita em transmissão de rádio o que, apesar de ser menos interessante sexualmente, faz dela uma funcionária perfeita da Rádio Stentor e minha assistente neste cargo que eu ocupo de vendedor de aparelhos de rádio de ondas curtas para esta rica cidade balneária". Sorriu. "Estamos os dois hospedados neste mesmo hotel e minha assistente estará sempre por perto caso seu novo rádio quebre. Todo aparelho novo, mesmo sendo francês, pode ter problemas no primeiro ou no segundo dia. Ou à noite também", acrescentou Ele, piscando exageradamente para Bond.
Este não achou nenhuma graça. "Que diabo! Por que será que eles me mandaram uma mulher?", resmungou Ele. "Será que eles pensam que isto aqui é um piquenique?"
Mathis interrompeu-o:
"Acalme-se, meu caro James. Mais eficiente do que ela você não poderia desejar, nem com mais sangue-frio. Ela fala francês como se tivesse nascido aqui e conhece o trabalho de trás para a frente. A suposta identidade que ela usa é perfeita e eu já arrumei para que o primeiro encontro de vocês seja muito natural. Aliás, o que seria mais natural do que você arranjar uma linda garota por aqui? Como um milionário da Jamaica", tossiu respeitosamente, "com sangue latino e tudo o mais, você pareceria nu sem uma mulher".
Bond resmungou, como se duvidasse da explicação.
“Alguma outra surpresa?" — indagou desconfiado.
"Nada de excepcional", respondeu Mathis. "Le Chiffre está instalado na vila que comprou, e que fica a uns 16 quilômetros daqui, descendo a estrada que acompanha o mar. Anda sempre com dois guarda-costas, que têm jeito de ser bem eficientes. Um deles já foi visto visitando uma pensãozinha na cidade, onde três sujeitos, misteriosos e meio animalescos, se registraram há três dias. Talvez eles façam parte do grupo. Seus papéis estão em ordem — ao que parece são apátridas tchecos — mas um dos nossos homens disse que a língua que eles falam no quarto em que estão hospedados é búlgaro. Não se vêem muitos deles por aqui. Na maior parte das vezes, são usados contra turcos e iugoslavos. São burros, mas obedientes. Os russos utilizam-nos para assassínios simples ou então como chamariz para outros assassínios mais complicados".
"Muito obrigado pela parte que me toca. Em qual das duas categorias eu estou incluído?" — perguntou Bond. "Algo mais?"
"Não. Venha ao bar do Hermitage antes do almoço. Eu farei as apresentações. Convide-a para jantar hoje à noite. Assim, será muito natural ela entrar no cassino com você. Eu também estarei lá, mas nos bastidores. Estarei acompanhado de um ou dois sujeitos muito bons, e não perderemos você de vista. Ah, há também um americano aqui chamado Leiter, hospedado no hotel. Felix Leiter. É o agente da CIA em Fontainebleau. Londres mandou-me avisar você. Ele parece OK. Talvez seja útil".
Uma torrente de palavras em italiano irrompeu do aparelho de rádio. Mathis desligou-o e os dois trocaram algumas frases sobre o aparelho e sobre como Bond deveria efetuar os pagamentos. Depois despediram-se efusivamente e, com uma piscadela final, Mathis inclinou-se e saiu.
Bond sentou-se à janela e reuniu os pensamentos. Nada do que Mathis dissera dava para inspirar confiança. Ele estava completamente descoberto e realmente vigiado por profissionais. Um atentado para botá-lo fora de combate poderia acontecer mesmo antes que tivesse uma chance de competir com Le Chiffre nas mesas de jogo. Os russos não têm preconceitos bobos contra assassínios. E agora havia essa peste dessa mulher. Bond suspirou. As mulheres são para a gente divertir-se. No trabalho, elas atrapalham e complicam as coisas com sexo, com sentimentos feridos e com toda a bagagem emocional que trazem consigo. A gente tem que tomar cuidado com elas, tem que tomar conta delas.
"Vaca!", disse Bond, e lembrando-se dos Muntz, repetiu "Vaca!" mais alto ainda e saiu do quarto.
5- A MOÇA DO QUARTEL-GENERAL
EXATAMENTE QUANDO O relógio da Prefeitura batia o carrilhão do meio-dia Bond deixou o Splendide. Havia no ar um perfume forte de pinheiros e mimosas, e os jardins do Cassino recém-regados, com caminhos de cascalho entremeando os canteiros bem cuidados, emprestavam à cena um formalismo lindo, mais apropriado ao cenário de um bale do que de um melodrama.
O sol brilhava, a alegria e a animação que se sentiam no ar pareciam prometer uma nova era de moda e prosperidade para a qual a pequena cidade balneária, depois de muitas vicissitudes, preparava-se galantemente.
Royale-les-Eaux, que fica perto do estuário do Somme, antes que a costa baixa das praias do sul da Picardia suba até os rochedos da Bretanha que vão até o Havre, teve a mesma sorte que Trouville.