Mathis parou somente para ligar o rádio diante da lareira e então, enquanto Bond despia as roupas respingadas de sangue, metralhou-o de perguntas.
Quando chegaram à descrição dos dois homens, Mathis retirou o telefone do gancho, ao lado da cama de Bond.
". . . e diga à polícia", concluiu, "diga a eles que o inglês da Jamaica que foi derrubado pela explosão é coisa minha. Ele está bem e não deve ser incomodado. Dentro de meia-hora, eu explico tudo a eles. Seria bom também que dissessem à imprensa que, aparentemente, foi um ato de vingança entre dois comunistas búlgaros e que um deles matou o outro com uma bomba. Não é preciso dizer nada do terceiro búlgaro, que devia estar rondando por ali, mas precisam pegá-lo de qualquer maneira. Ele certamente tentará ir para Paris. Bloqueiem todas as estradas. Entendido? Então boa sorte".
Mathis virou-se para Bond e ouviu a estória toda até o fim. "Vá ter sorte lá longe", disse Ele, quando Bond terminou. "Logicamente a bomba era para você. Mas devia estar com algum defeito. Eles pretendiam jogá-la e depois esconder-se atrás da árvore. Só que o tiro saiu pela culatra. Não faz mal. Nós descobriremos os fatos". Fez uma pausa. "Mas realmente é um caso curioso. Essa gente parece estar levando você a sério." Mathis parecia ofendido. "Mas como c que esses búlgaros desgraçados pretendiam fugir? E o que significavam aqueles estojos vermelho e azul? Precisamos tentar encontrar fragmentos do vermelho".
Mathis roeu as unhas. Estava excitado, os olhos brilhando. Este caso estava ficando formidável, dramático, com aspectos nos quais Ele estava agora pessoalmente interessado. Certamente já não era somente um caso de ficar atrás de Bond enquanto Ele travava sua batalha particular com Le Chiffre no Cassino. Mathis deu um pulo.
"Agora beba alguma coisa, almoce e descanse", ordenou a Bond. "Quanto a mim, preciso meter o bedelho nesta estória antes que a polícia esmague todas as pistas com suas botas pretas".
Mathis desligou o rádio e com a mão deu um até-logo amistoso para Bond. A porta bateu e Fez-se silêncio no quarto. Bond sentou-se um pouco à janela, feliz com o fato de ainda estar vivo.
Mais tarde, quando Bond estava terminando seu primeiro uísque com gelo e contemplando o "patê de foie gras" que o garçom acabara de depositar à sua frente, o telefone tocou.
"Aqui é mademoiselle Lynd".
Falava baixo e sua voz parecia ansiosa.
"Você está bem?"
"Sim, muito bem".
"Ainda bem. Por favor, tome cuidado".
E desligou.
Bond sacudiu a cabeça, como se pretendesse acordar direito, depois apanhou a faquinha e escolheu a fatia mais grossa de torrada quente que havia à sua frente. Raciocinou: dois deles já se foram deste para o outro mundo. Tenho um mais a meu lado. É um bom começo.
Mergulhou a faca no copo de água quente que estava ao lado do pote de porcelana de Estrasburgo e lembrou-se de dar uma gorjeta dobrada ao garçom por ter trazido estas coisas tão especiais.
7- VERMELHO E PRETO
BOND FAZIA QUESTÃO absoluta de estar completamente preparado e descansado para uma sessão de jogo que poderia durar até a noite inteira. Pediu um massagista para as três horas. Depois que os restos de sua refeição foram retirados do quarto, Ele sentou-se outra vez à janela, olhando o mar ao longe, até que uma batida na porta anunciou a chegada do massagista, um sueco.
Silenciosamente, Ele trabalhou no corpo de Bond dos pés à cabeça, desfazendo as tensões e acalmando os seus nervos ainda abalados. Até as marcas arroxeadas que haviam ficado no ombro em que Bond se machucara deixaram de latejar, e quando o sueco partiu Bond caiu num sono profundo.
À noite, acordou completamente refeito.
Tomou um chuveiro frio e depois caminhou até o Cassino. Desde a noite anterior, Ele havia desligado completamente o espírito das mesas de jogo. Agora, precisava restabelecer essa maneira de encarar o jogo, uma espécie de contato íntimo, que é meio matemático, meio intuitivo, e que, mais o pulso calmo e o temperamento moderado, constituem equipamento essencial para qualquer jogador que se proponha a ganhar no jogo.
Bond sempre fora um jogador. Gostava de sentir o embaralhar seco das cartas e o drama constante que, sem que os assistentes percebam, marca as figuras silenciosas dispostas em volta das mesas verdes. Gostava do conforto sólido e estudado das salas de carteado dos cassinos, os braços acolchoados das cadeiras, o copo de champanha ou de uísque ao lado, a atenção silenciosa e despreocupada dos bons empregados. Divertia-se com a imparcialidade da bolinha que gira na roleta, das cartas baralho — e suas eternas alternativas. Gostaria de se sentir ator e espectador ao mesmo tempo e de, sentado em sua cadeira participar dos dramas e das decisões dos outros, até chegar sua própria vez de dizer aquele "sim" vital, ou aquele "não" vital, geralmente com uma chance de cinqüenta por cento.
Mas, acima de tudo, Ele gostava de ser o único responsável pelas próprias atitudes, como todo bom jogador. Não há mais ninguém a elogiar ou a culpar: só a gente mesmo. A sorte é um empregado, não um patrão. Ela deve ser recebida com um encolher de ombros ou então ser aproveitada ao máximo. Mas precisa ser compreendida e reconhecida pelo que é, e não confundida com uma falsa apreciação das probabilidades porque, no jogo, confundir uma má jogada com a má sorte é pecado mortal. E a sorte, em todos os seus aspectos, deve ser amada e não temida. Bond via a sorte como uma mulher, a ser docemente conquistada ou brutalmente atacada, mas nunca perseguida ou conseguida através de terceiros. Mas Ele era suficientemente honesto para admitir que nunca, até então, havia sofrido por causa de mulheres ou de jogo. Um dia, e Ele aceitava esta certeza, haveria de cair de joelhos por causa de uma mulher ou por causa da má sorte. Quando isso acontecesse, saberia também que ficaria marcado com aquele ponto de interrogação que tantas vezes já percebera nos outros, a promessa de pagar antes de perder: a aceitação do fato de que também poderia falhar.
Contudo, naquela noite de junho, foi com uma sensação de confiança e alegre antecipação que, depois de passar pela "cozinha" (saia onde ficam as mesas públicas), entrou na sala privada e trocou um milhão de francos em fichas de cinqüenta mil e sentou-se ao lado do chef de partie da primeira mesa de roleta.
Pediu emprestada a agenda do chef e estudou todas as rodadas da bolinha, desde que a sessão começara, às três horas da tarde. Sempre fazia isto, mesmo sabendo que cada virada da roda, que cada caída da bolinha dentro de uma concavidade com um número, não tinha relação absolutamente nenhuma com a precedente. Aceitava sem problemas a idéia de que o jogo recomeça cada vez que o croupier pega a bolinha de marfim branco com a mão direita, gira a roleta no sentido horário com a mesma mão e, num terceiro movimento também com a mão direita, joga a bolinha em sentido anti-horário no anel que cerca a roda da roleta.
É óbvio que todo esse ritual e todas essas minúcias mecânicas da roda e do cilindro, mais as marcações dos números, foram de tal maneira aperfeiçoadas nos últimos anos, que não é mais possível, nem com a prática do croupier nem com uma eventual indecisão ao dar impulso à roda, impedir que a bolinha caia no número que a sorte mandar. Mesmo assim, há uma convenção entre os jogadores de roleta — e Bond a seguia religiosamente — de anotar o histórico inteirinho de cada sessão e de se guiar pela menor peculiaridade observada no girar da roda. Por exemplo, é importante levar em consideração seqüências de mais de dois em um mesmo número ou de mais de quatro noutras chances, até chegar a contas redondas.
Bond não defendia este princípio. Simplesmente acreditava que, quanto mais esforço e engenho você coloca no jogo, mais você tira dele.
No histórico daquela mesa em que se sentara, onde o jogo já começara desde três horas, Bond pouca coisa viu de interessante, a não ser que a última dúzia estava um pouco desfavorecida nas últimas jogadas. Costumava jogar sempre de acordo com a roda, e somente ir contra seus planos prévios, começando um novo sistema, depois que aparecesse um zero. Desta maneira decidiu jogar seu sistema favorito e cobrir duas dúzias — neste caso as duas primeiras — cada qual com o máximo: cem mil francos. Assim, ficava com dois terços da mesa cobertos (menos o zero) e, desde que as dúzias pagam na proporção de dois para um, ganharia cem mil francos cada vez que desse qualquer número abaixo de 25.