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Ergueu os olhos, à entrada de Drinkwater.

— Ah, Drinkwater — falou, detendo-o. — Tem um minutinho?

— Mas, claro. — Drinkwater ficou surpreso com a repentina afabilidade de Peter Marlowe. Mas manteve os olhos azul-claros baixados, pois temia que o ódio abrasador que sentia por Peter Marlowe se extravasasse neles. Calma, Theo, falou consigo mesmo. Há meses que se vem controlando. Não ponha tudo a perder agora. Só mais umas horas, depois pode esquecer-se dele e de todos os outros homens horríveis. Lyles e Blodger não tinham o direito de tentá-lo. Nenhum direito. Bem, tiveram o que mereciam.

— Lembra-se da perna de coelho que roubou? Os olhos de Drinkwater faiscaram.

— Do quê... do que está falando?

Do outro lado do corredor, Phil parou de se cocar e levantou os olhos.

— Ora, qual é, Drinkwater — disse Peter Marlowe. — Já não estou mais ligando. Por que, diabo, ligaria? A guerra acabou, e.estamos fora dela. Mas lembra da perna de coelho, não lembra?

— Não sei do que está falando. — Os olhos de Drinkwater faiscaram. — Não — respondeu, asperamente — não me lembro. — Mas teve que se controlar para não dizer “deliciosa, deliciosa!”

— Não era coelho, sabia?

— Ah, é? Desculpe, Marlowe mas não fui eu. E não tenho a menor idéia, até o dia de hoje, de quem o roubou, fosse lá o que fosse!

— Vou contar-lhe o que era — disse Peter Marlowe, saboreando aquele momento. — Era carne de rato. Carne de rato.

Drinkwater riu.

— Como você é engraçado! — comentou o pastor, com sarcasmo.

— Ah, mas era rato, sim! Era mesmo. Peguei um rato, grande e peludo e sarnento. Acho que estava com peste.

O queixo de Drinkwater tremia, as bochechas se sacudiam.

Phil piscou o olho para Peter Marlowe, e confirmou alegremente:

— Isso mesmo, Reverendo. Estava todo sarnento. Vi o Peter tirar a pele da perna...

Foi então que Drinkwater vomitou por todo o seu belo uniforme limpinho, e saiu correndo, e vomitou mais um pouco, lá fora. Peter Marlowe começou a rir, e logo a choça inteira estava às gargalhadas.

— Ó, Deus — disse Phil, debilmente — tenho que admitir, Peter, que foi uma idéia brilhante. Fingir que era um rato. Ó, meu Deus, bem que o sacana merecia essa!

— Mas era mesmo rato — explicou Peter Marlowe. — Deixei-o de propósito para que ele o roubasse.

— Ah, sim, claro — disse Phil com sarcasmo, usando automaticamente o seu mata-moscas. — Não tente enfeitar mais uma história tão maravilhosa! Maravilhosa!

Peter Marlowe sabia que não acreditariam nele. Portanto, ficou calado. Ninguém acreditaria, se não lhes mostrasse as gaiolas... Meu Deus! As gaiolas, a criação! Seu estômago revirou.

Vestiu a farda nova. As dragonas mostravam seu posto — Capitão-aviador. Sobre o peito esquerdo, trazia as asas. Olhou à sua volta, para os seus pertences... cama, mosquiteiro, colchão, coberta, sarongue, camisa rasgada, um short esfarrapado, dois pares de tamancos, faca, colher e três pratos de alumínio. Juntou tudo que estava sobre a cama, levou lá para fora e ateou fogo.

— Ei, você... ah, desculpe, senhor — disse o Sargento. — As fogueiras são perigosas.

O Sargento era um estranho, mas Peter Marlowe não tinha mais medo de estranhos.

— Dê o fora — falou Peter Marlowe, bruscamente.

— Mas, senhor...

— Falei para dar o fora, merda!

— Sim, senhor.

O Sargento bateu continência e Peter Marlowe ficou muito satisfeito por não sentir mais medo da gente de fora. Retribuiu a continência, e desejou não tê-lo feito, pois estava sem o quepe. Tentou disfarçar o erro, dizendo:

— Onde, diabo, enfiei meu quepe?

Depois, voltou para a choça, sentindo retornar o medo dos estranhos. Mas forçou o medo a se afastar, e jurou para si mesmo: “Juro, pelo Senhor meu Deus, que nunca mais vou ter medo de novo. Nunca.”

Achou o quepe e a lata de sardinhas escondida. Enfiou a lata no bolso, desceu as escadas da choça e subiu a estrada, ao longo da cerca. O campo agora se achava quase deserto. O resto das tropas inglesas estava indo embora hoje, no mesmo comboio que ele. Indo embora. Muito depois que todos os australianos já haviam partido, e séculos depois dos ianques. Mas isso era de se esperar. Somos vagarosos, mas muito seguros.

Parou perto da choça americana. O pedaço de lona do toldo se agitava tristemente ao vento do passado. Então, Peter Marlowe entrou na choça, pela última vez.

Não estava vazia. Grey estava lá, todo uniformizado.

— Veio dar uma última olhada no local dos seus triunfos? — perguntou, venenosamente.

— Pode-se dizer isso. — Peter Marlowe preparou um cigarro e guardou as sobras na sua caixa de fumo. — E agora a guerra acabou. Agora somos iguais, eu e você.

— Isso mesmo. — A pele do rosto de Grey estava esticada, seus olhos pareciam de cobra. — Tenho ódio de você.

— Lembra do Dino?

— O que é que tem?

— Era o seu “informante”, não era?

— Agora, suponho que não faça mal admiti-lo.

— O Rei sabia tudo sobre o Dino.

— Não acredito.

— Dino passava informações para você, seguindo ordens. As ordens do Rei! — disse Peter Marlowe, rindo.

— Você é um mentiroso de uma figa!

— Por que deveria mentir? — A risada de Peter Marlowe cessou abruptamente. — A época de mentir acabou. De vez. Mas Dino seguia ordens. Lembra-se de como você sempre chegava um pouco tarde demais? Sempre.

Ó, meu Deus, pensou Grey. Sim, agora entendo. Peter Marlowe deu uma tragada no cigarro.

— O Rei imaginou que, se você não obtivesse umas informações verdadeiras, tentaria arranjar um informante. Então, providenciou um.

Repentinamente, Grey sentiu-se cansado. Muito cansado. Muitas coisas eram difíceis de entender. Muitas coisas, coisas estranhas. Então reparou em

Peter Marlowe, no seu sorriso irônico, e todo o seu sofrimento contido explodiu. Voou pela choça, derrubou com um chute a cama do Rei, espalhou seus pertences, depois virou-se, furioso, para Peter Marlowe.

— Muito espertinho! Mas vi o Rei ser espezinhado, e verei o mesmo acontecer com você. E com toda a sua nojenta classe!

— É?

— Pode apostar! Vou vingar-me de você, de alguma maneira, nem que tenha que passar a vida inteira tentando. Vou acabar vencendo. Sua sorte vai esgotar-se.

— Sorte não tem nada a ver com isso.

Grey levantou o dedo em riste, na cara de Peter Marlowe.

— Você nasceu com sorte. Terminou Changi com sorte. Ora, até mesmo escapou com o pouquinho de alma que sempre teve!

— Do que está falando? — Peter Marlowe empurrou o dedo para longe.

— Corrupção. Corrupção moral. Foi salvo bem a tempo. Mais alguns meses junto da maldade do Rei, e se teria modificado para sempre. Estava começando a virar um grande mentiroso e trapaceiro... como ele.

— Ele não era mau, nem trapaceou com ninguém. Apenas se adaptou às circunstâncias.

— O mundo seria uma lástima, se todos se escondessem atrás dessa desculpa. Há uma coisa chamada moralidade.

Peter Marlowe jogou o cigarro no chão, esmagando-o com o pé.

— Não me diga que preferiria estar morto, com todas as suas malditas virtudes, do que vivo, sabendo que teve que transigir um pouco.

— Um pouco? — Grey soltou uma risada áspera. — Você abriu mão de tudo... honra, integridade, orgulho... tudo por uma esmola do pior sacana neste buraco de merda!

— Quando se pára para pensar, o sentimento de honra do Rei era bem grande. Mas tem razão numa coisa. Ele me modificou. Fez-me ver que um homem é um homem, pouco importando suas origens. Contra tudo que me fora ensinado. Portanto, estava errado quando o menosprezava por uma coisa que não era sua culpa, e lamento isso. Mas não me desculpo por desprezá-lo por ser o homem que é.

— Pelo menos, não vendi minha alma! — A farda de Grey estava manchada de suor, e fitava Peter Marlowe com olhos malévolos. Mas, por dentro, sufocava de ódio por si mesmo. E quanto a Smedly-Taylor?, perguntou-se. É verdade, também me vendi. Mas, pelo menos, sei que o que fiz foi errado. E sei por que o fiz. Sentia vergonha de minhas origens, queria pertencer à classe bem-nascida. À sua maldita classe, Marlowe. Nas Forças Armadas. Mas, agora,