— Estou-lhe pedindo. Quer sentar-se um minuto? Por favor.
— Está bem — falou Peter Marlowe, rigidamente.
— Olhe — disse o Rei, pacientemente. — Você tirou meu pescoço da corda. Ajudou-me... e cabe a mim ajudá-lo. Ofereci-lhe a grana porque queria agradecer. Se não a quer, tudo bem... mas não quis insultá-lo. Se insultei, peço desculpas.
— Desculpe — falou Peter Marlowe, amolecendo. Tenho mau gênio. Não compreendi.
O Rei estendeu a mão.
— Aperte os ossos.
Peter Marlowe apertou a mão do outro.
— NIo gosta do Grey, não é mesmo? — falou o Rei, cautelosamente.
— Não.
— Porquê?
Peter Marlowe deu de ombros. O Rei dividiu o arroz descuidadamente, e entregou-lhe a porção maior.
— Vamos comer.
— Mas, e você? — perguntou Peter Marlowe, olhando assombrado para a quantidade maior.
— Não estou com fome. Perdi o apetite. Jesus, mas tiramos um fino. Pensei que os dois tínhamos entrado bem.
— É — concordou Peter Marlowe, com um esboço de sorriso. — Foi muito divertido, não foi?
— Hem?
— Ora, a emoção. Acho que há anos não curto tanto uma coisa: o perigo-excitação.
— Há muitas coisas que não entendo em você — disse o Rei, debilmente. — Quer dizer que se divertiu?
— Claro... você não? Achei quase tão bom quanto voar um Spitfire. Sabe, na hora você fica com medo, mas ao mesmo tempo não fica... e durante e depois você fica meio atordoado.
— Acho que você é biruta.
— Se não se estava divertindo, por que tentou derrubar-me com aquela de studl Quase morri.
— Não tentei derrubá-lo. Por que, diabo, ia querer derrubá-lo?
— Para tornar a coisa mais emocionante, e para me testar. O Rei enxugou os olhos e o rosto, cansadamente.
— Quer dizer que acha que agi deliberadamente?
— Claro. Fiz o mesmo quando passei as perguntas para você.
— Espere aí, vamos deixar as coisas bem claras: fez aquilo apenas para testar meus nervos? — falou o Rei, com voz ofegante.
— Mas, naturalmente, meu velho — retrucou Peter Marlowe. — Não entendo qual o problema.
— Jesus! — exclamou o Rei, começando a suar de novo, nervoso. — Estávamos quase no xilindró e você fica de brincadeirinhas! — O Rei fez uma pausa para respirar. — Mas que loucura, que loucura total, e quando você hesitou depois de eu ter-lhe dado a pista do “buraco”, pensei que estávamos mortos.
— Grey também pensou assim. Eu estava só brincando com ele. Acabei a brincadeira logo porque os ovos estavam esfriando. E não se vê um ovo frito desses a torto e a direito. Juro que não.
— Pensei que tinha dito que ele não prestava.
— Disse que “não era mau”. — Peter Marlowe hesitou. — Olhe, dizer “nada mau” significa que é excepcional. Essa é uma maneira de elogiar um sujeito sem o deixar embaraçado.
— Você está louco varrido! Arrisca o pescoço... e o meu também... para aumentar o perigo, fica fulo de raiva quando lhe ofereço dinheiro, sem compromisso, e diz que uma coisa é “nada má” quando quer dizer que é ótima. Puxa — acrescentou, estupefato — acho que sou imbecil, ou coisa parecida. — Ergueu os olhos e viu o ar perplexo na cara de Peter Marlowe, e teve que rir. Peter Marlowe também começou a rir, e logo ambos estavam histéricos.
Max enfiou a cabeça pela porta da choça, com os outros americanos logo atrás.
— Mas que diabo deu nele! — exclamou Max, boquiaberto. — Pensei que a esta altura já estaria enchendo o outro de porrada.
— Madonna! — exclamou Dino. — Primeiro, quase fazem picadinho do Rei, e agora está às gargalhadas com o cara que o dedurou.
— Não faz sentido. — 0 estômago de Max estava dando voltas desde o assobio de advertência.
O Rei ergueu os olhos e viu os homens fitando-o. Pegou o que restava do maço de cigarros.
— Tome, Max. Distribua isso. Comemoração!
— Puxa, obrigado. — Max pegou o maço. — Cara! Mas essa foi por pouco. Estamos muito contentes.
O Rei leu os sorrisos. Alguns eram reais, e ele os marcou. Outros eram falsos, e ele os conhecia, de todo jeito. Os homens fizeram eco aos agradecimentos de Max.
Este levou os homens para fora de novo, e começaram a dividir o tesouro. E o choque — disse, baixinho. — Tem que ser. Como uma neurose de guerra. Daqui a pouquinho estará arrancando fora a cabeça do inglês. — Max desviou o olhar ao escutar novas risadas vindas da choça, e deu de ombros. — Está biruta...
— Pelo amor de Deus — dizia Peter Marlowe, segurando a barriga. — Vamos comer. Se não comer logo, depois não vou conseguir.
E assim começaram a comer. Entre espasmos de riso. Peter Marlowe lamentava que os ovos estivessem frios, mas os risos aqueceram os ovos, deixando-os soberbos.
— Precisam de um pouco de sal, não acha? — perguntou, tentando manter a voz inexpressiva.
— Puxa, acho que sim. Pensei que tinha posto bastante. — O Rei franziu a testa e virou-se para pegar o sal, e então viu os olhos risonhos. — Mas que diabo é agora? — indagou, começando a rir, a contragosto.
— Foi uma brincadeira, pelo amor de Deus. Vocês americanos não têm muito senso de humor, não é?
— Vá à merda! E porra, pare de rir!
Quando terminaram os ovos, o Rei começou a fazer café na chapa quente, e procurou por seus cigarros. Aí lembrou-se de que os dera, e abaixou-se para destrancar a caixa preta.
— Tome, prove um pouco desse — falou Peter Marlowe, oferecendo sua caixa de tabaco.
— Obrigado, mas não suporto esse troço. Deixa minha garganta em pandarecos.
— Experimente. Foi tratado. Aprendi com os javaneses.
Indecisamente, o Rei pegou a caixa de cigarros. O tabaco era a mesma erva barata, mas, ao invés de ser amarelo-palha, era dourado-escuro; ao invés de ser seco, era úmido e tinha textura; ao invés de ser inodoro, tinha cheiro de tabaco, doce e forte. Pegou o pacote de papel de arroz e tirou uma quantidade exagerada do fumo tratado. Enrolou um tubo desleixadamente e cortou fora as pontas salientes, deixando cair no chão, descuidadamente, o tabaco excedente.
Puta merda, pensou Peter Marlowe, eu disse para experimentar, não para tomar conta de tudo. Sabia que devia ter apanhado do chão as sobras do tabaco para recolocá-las na caixa, mas não o fez. Há certas coisas que não dão para um cara fazer, pensou novamente.
O Rei acendeu o isqueiro e eles riram juntos ao vê-lo. O Rei deu uma baforada cautelosa, depois mais outra. A seguir, uma boa tragada.
— Mas é ótimo — falou, atônito. — Não tão bom quanto um Kooa... mas é... — Parou e corrigiu-se. — Não é nada mau.
— Nada mau mesmo — disse Peter Marlowe, rindo.
— Mas que diabo, o que você faz?
— Segredos do ofício.
O Rei sabia que tinha uma mina de ouro nas mãos.
— Suponho que seja um processo longo e complicado — falou, com delicadeza.
— Não, até que é fácil. Basta deixar a erva crua de molho no chá, depois espremê-la. A seguir, joga-se por cima um pouco de açúcar refinado, e amassa-se bem. Quando ele estiver bem absorvido, cozinha-se o fumo em fogo baixo, numa frigideira, sempre mexendo, senão estraga. Tem que ficar no ponto certo: nem seco demais, nem úmido demais.
O Rei ficou surpreso que Peter Marlowe lhe houvesse contado o processo com tanta facilidade... sem tentar negociar, primeiro. Claro, pensou, ele está apenas aguçando meu apetite. Não pode ser assim tão fácil, senão todo o mundo estaria fazendo. E ele provavelmente sabe que sou o único com quem pode fazer negócio.
— Só isso? — comentou o Rei, sorridente.
— Só. Não tem grandes segredos.
O Rei já antevia um próspero negócio. E, além de tudo, legal.
— Imagino que todo o mundo em sua choça trate o fumo dessa maneira. Peter Marlowe sacudiu a cabeça.
— Só o faço para a minha unidade. Há meses que implico com eles, contando-lhes todo o tipo de histórias, mas nunca adivinharam o modo exato.