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— Acredita nisso?

Peter Marlowe deu de ombros. Cuidado, disse para si mesmo, nunca se pode esquecer o cuidado.

— Acredito, sim. Nunca se sabe ao certo o que é boato ou não.

— E a nossa guerra? E quanto a ela?

Como a pergunta fora feita por um amigo, Peter Marlowe falou livremente:

— Acho que a nossa vai durar para sempre. Ah, vamos derrotar os japoneses. Estou certo disso. Mas quanto a nós, não creio que saiamos daqui.

— Por quê?

— Bem, não creio que os japoneses jamais cedam. O que significa que teremos que desembarcar no país deles. E quando isso acontecer, acho que nos eliminarão, a todos nós aqui. Se as doenças e moléstias já não houverem acabado com a gente.

— Mas por que fariam isso?

— Ora, para poupar tempo, imagino. Acho que quando a rede começar a apertar o Japão, eles começarão a içar seus tentáculos. Por que perder tempo com alguns milhares de prisioneiros? Os japoneses encaram a vida de modo bem diferente do nosso. E a idéia de tropas nossas no solo deles vai levá-los à loucura. — A voz dele era bem calma e inexpressiva. — Acho que estamos ferrados. Claro que espero estar errado. Mas acho que não estou.

— Mas que filho da puta esperançoso você é — disse o Rei, com azedume, e quando Peter Marlowe riu, ele continuou: — Que diabo, do que está rindo? Parece que está sempre rindo nas horas erradas.

— Desculpe, é um mau hábito.

— Vamos sentar lá fora. As moscas estão ficando impossíveis. Ei, Max — chamou o Rei — quer limpar aqui?

Max chegou e começou a limpeza, e o Rei e Peter Marlowe pularam agilmente a janela. Do lado de fora da janela do Rei, havia outra mesinha e um banco sob um toldo de lona, O Rei sentou-se no banco. Peter Marlowe acocorou-se, à moda nativa.

— Nunca pude fazer isso — comentou o Rei.

— É muito confortável. Aprendi em Java.

— Como é que você fala o malaio tão bem?

— Morei algum tempo numa aldeia.

— Quando?

— Em 1942. Após o cessar-fogo.

O Rei esperou pacientemente que ele continuasse, mas Peter ficou calado. Após esperar mais algum tempo, perguntou:

— Como foi que você morou numa aldeia javanesa após o cessar-fogo em 1942, quando todo o mundo estava em campos de prisioneiros de guerra, a essa altura?

Peter Marlowe deu uma risada gostosa.

— Desculpe. Não há muito para contar. Não me agradava a idéia de ficar num campo. Na verdade, quando a guerra acabou, perdi-me nas selvas e acabei por achar a tal aldeia. Eles tiveram pena de mim. Fiquei lá uns seis meses.

— E que tal era?

— Uma maravilha. Eram todos muito bondosos, eu era como um deles. Vestido de javanês, a pele tingida de escuro... bobagem, afinal a minha altura e olhos me traíam... trabalhava nos arrozais.

— Sozinho?

Depois de uma pausa, Peter Marlowe disse :

— Eu era o único europeu ali, se é o que quer saber. — Fixou o olhar no campo, vendo o Sol bater na poeira e o vento levantar a poeira e fazé-la remoinhar. Ó remoinho fazia com que se lembrasse dela. Desviou os olhos para o leste, para um céu nervoso. Mas ela era parte do céu. O vento ficou um pouco mais forte e dobrou os topos dos coqueiros. Mas ela era parte do vento, das folhas e das nuvens mais além.

Peter Marlowe forçou o pensamento para longe dela e ficou vendo o guarda coreano caminhar pesadamente ao longo da cerca, suando com o calor. O uniforme do guarda era cocado e mal-ajambrado, e o quepe tão amassado quanto seu rosto, e o fuzil pousava torto sobre os ombros. Era tão desgracioso quanto ela era graciosa.

Mais uma vez, Peter Marlowe levantou os olhos para o céu, buscando a distância. Somente então podia sentir que não estava dentro de uma caixa... uma caixa cheia de homens, e cheiros de homens, e sujeira de homens, e ruídos de homens. Sem mulheres, pensou Peter Marlowe, desalentado, os homens não passam de uma piada cruel. E sangrou sob o vigor do Sol.

— Ei, Peter! — O Rei olhava para o alto da ladeira, de boca aberta. Peter Marlowe acompanhou o olhar do Rei, e seu estômago deu voltas ao ver que Sean se aproximava. Santo Deus, que vontade de entrar pela janela e sumir, mas sabia que aquilo ainda chamaria mais atenção para si. E então esperou sombriamente, quase sem respirar. Pensou que havia uma boa chance de não ser visto, pois Sean estava muito entretido conversando com o Líder de Esquadrilha Rodrick e com o Tenente Frank Parrish. As três cabeças estavam bem juntas, o papo animado.

E então, Sean olhou para além de Frank Parrish e viu Peter Marlowe, e parou.

Rodrick e Frank também pararam, surpresos. Quando viram Peter Marlowe, pensaram: “Ó, meu Deus.” Mas disfarçaram a ansiedade.

— Alô, Peter — falou Rodrick. Era um homem alto e aprumado, com um rosto bem delineado, tão alto e aprumado quanto Frank Parrish era alto e desleixado.

— Alô, Rod! — respondeu Peter Marlowe.

— Não demoro — disse Sean suavemente para Rodrick, e dirigiu-se para Peter Marlowe e o Rei. Agora que o choque inicial se dissipara, Sean exibia um sorriso amistoso.

Peter Marlowe sentiu a nuca ficar toda arrepiada, levantou-se e esperou. Podia sentir os olhos do Rei cravados nele.

— Alô, Peter — cumprimentou Sean.

— Alô, Sean.

— Está muito magro, Peter.

— Não creio que esteja mais magro do que os outros. Estou bem disposto, felizmente.

— Há tanto tempo não o vejo... por que não dá um pulinho no teatro, de vez em quando? Tem sempre um pouquinho de comida extra por lá... e você sabe como sou, nunca fui de comer muito. — Sean deu um sorriso esperançoso.

— Obrigado — retrucou Peter Marlowe, morto de vergonha.

— Bem, sei que não irá — disse Sean, tristemente — mas será sempre bem-vindo. — Fez uma pausa. — Nunca mais o vejo.

— Bem, sabe como é, Sean. Você em todos os shows e eu, bem, sou destacado para os grupos de trabalho, e outras coisas.

Como Peter Marlowe, Sean estava de sarongue, mas, ao contrário do sarongue de Peter, que era puído e desbotado, o de Sean era novo, branco, e debruado de azul e prateado. E Sean usava um bolero nativo de mangas curtas, acabando logo acima da cintura, cortado justo e enfatizando o busto. O Rei olhava fascinado para o decote entreaberto do bolero.

Sean notou o Rei e sorriu de leve e afastou do rosto os cabelos que o vento havia desmanchado, e brincou com eles até o Rei levantar os olhos. Sean sorriu intimamente, sentindo-se aquecer por dentro, ao ver o Rei enrubescer.

— Está ficando quente, não é? — comentou o Rei, constrangido.

— Suponho que sim — replicou Sean, amavelmente, sem suar ou parecer sentir calor, como sempre... não importa quão alta a temperatura.

Fez-se silêncio.

— Ah, desculpe — disse Peter Marlowe, ao ver Sean olhando para o Rei e esperando pacientemente. — Conhece...

Sean achou graça.

— Meu Deus, Peter. Como está nervoso. Claro que sei quem é o seu amigo, embora nunca tenhamos sido apresentados. — Sean estendeu a mão. — Como vai? É uma grande honra conhecer um Rei!

— Hã... obrigado — disse o Rei, mal tocando a mão, tão pequenina junto a sua. — Hã... quer um cigarro?

— Não, obrigado. Mas se não se importa, vou levar um comigo. Ou melhor, dois, posso? — Sean fez um sinal de cabeça para a trilha. — Rod e Frank fumam, e sei que adorariam.

— Claro — disse o Rei. — Claro.

— Obrigado. É muito gentil.

Mesmo a contragosto, o Rei sentiu o calor do sorriso de Sean. E sem querer, falou, com toda a sinceridade:

— Esteve ótimo em Otelo.

— Obrigado — disse Sean, radiante. — Gostou do Hamletl

— Gostei. E nunca fui muito ligado em Shakespeare. Sean achou graça.

— Isso é que é elogio. Vamos fazer uma nova peça, agora. Frank a escreveu especialmente e deve ser muito divertida.

— Basta ser comum, já será formidável — disse o Rei, mais à vontade — e você será formidável.

— Mas que gentileza. Obrigado. — Sean olhou para Peter Marlowe e seus olhos apresentaram um brilho adicional. — Temo que Peter não concorde com você.