— Saudações, senhor. Talvez tenhamos uma longa espera, e eu vos suplico que me deixeis levar comigo o meu cantil, pois estou com disenteria. — Enquanto falava, sacudia o cantil. Estava cheio.
O guarda arrancou-lhe o cantil das mãos e farejou-o, desconfiado. A seguir, despejou um pouco de água no chão e devolveu com brutalidade o cantil para Peter Marlowe, xingou-o de novo e fez sinal para os homens formados lá embaixo.
Peter Marlowe fez uma reverência, tonto de alívio, e correu para juntar-se a seu grupo.
— Mas que diabo, onde estava, Peter? — indagou Spence, com a dor da disenteria aumentando sua ansiedade.
— Não importa, estou aqui. — Agora que Peter Marlowe estava de posse do seu cantil, ficou até brincalhão. — Como é, Spence, mande os caras entrarem em forma — falou, implicante.
— Vá à merda. Vamos, rapazes, em forma. — Spence contou os homens e perguntou: — Cadê o Bonés?
— No hospital — respondeu Ewart. — Foi para lá logo depois do café. Eu mesmo o levei.
— Mas que diabo, por que não me contou antes?
— Trabalhei o dia inteiro na horta, droga! Vá encher outro!
— Vá com calma, ouviu?
Mas Peter Marlowe não estava prestando atenção às pragas, bate-bocas e boatos. Só esperava que o Coronel e o Mac também estivessem com seus cantis.
Quando havia contado todo o seu grupo, o Capitão Spence foi até onde estava o Tenente-Coronel Sellars, encarregado nominal de quatro choças, e bateu continência:
— Sessenta e quatro, tudo correto, senhor. Dezenove aqui, vinte e três no hospital, vinte e dois nos destacamentos de trabalho.
— Está certo, Spence.
Logo que Sellars teve os números das suas quatro choças, somou-os e levou-os até o Coronel Smedly-Taylor, que era o responsável por 10 choças. A seguir, Smedly-Taylor levou esse número adiante, e assim sucessivamente, dentro e fora da cadeia, até que os totais foram levados ao Comandante do Campo. Este somou o número de homens dentro do campo ao número de homens no hospital e ao número de homens em destacamentos de trabalho, e depois passou o total ao Capitão Yoshima, o intérprete japonês. Yoshima xingou o Comandante do Campo porque o total não conferia: faltava um homem.
Houve uma hora dolorosa de pânico até que o homem que faltava foi encontrado, enterrado no cemitério. O Coronel Dr. Rofer, do Corpo Médico britânico, xingou seu assistente, Coronel Dr. Kennedy, que tentou explicar que era difícil saber a contagem certa, de um instante para o outro, mas o Coronel Rofer xingou-o assim mesmo e disse que aquilo era responsabilidade dele. A seguir, Rofer foi cabisbaixo prestar contas ao Comandante do Campo, que o acusou de ineficiência, e então o Comandante do Campo dirigiu-se a Yoshima e tentou explicar polidamente que o corpo fora encontrado, mas que era difícil manter os números precisos até o último segundo. E Yoshima acusou o Comandante do Campo de ineficiência e disse-lhe que era o responsável... se não conseguia saber um simples número, talvez fosse hora de outro oficial assumir o comando do campo.
Enquanto a raiva percorria os homens formados, os. guardas coreanos revistavam as cabanas, especialmente as dos oficiais. Ali estaria o rádio que buscavam. 0 elo, a esperança dos homens. Queriam encontrar o rádio, como haviam encontrado o outro há cinco meses. Mas os guardas suavam em bicas, como os homens formados suavam em bicas, e a revista deles foi superficial.
Os homens suavam e praguejavam. Alguns desmaiavam. Os que sofriam de disenteria corriam para as latrinas. Os que estavam muito mal agachavam-se ou deitavam-se onde estavam e deixavam a dor rodopiar e consumar-se. Os que estavam sadios não sentiam o fedor. O fedor era normal, a correria para as latrinas era normal, e a espera era normal.
Após três horas, a revista terminou. Os homens foram dispensados. Correram para as choças e a sombra, ou jogaram-se na cama, onde ficaram ofegando, ou foram para os chuveiros e esperaram e reclamaram até que a água lhes aliviou a dor de cabeça.
Peter Marlowe saiu do chuveiro. Enrolou o sarongue na cintura, e foi para o bangalô de concreto dos seus amigos, sua unidade.
— Puki ‘mahlu! — disse Mac, abrindo um sorriso. O Major McCoy era um escocês pequeno, durão e de postura bem ereta. Vinte e cinco anos nas selvas da Malásia haviam feito marcas profundas no seu rosto... isso, e mais bebida e dissipação e ataques de febre.
— ‘Mahlu senderis — replicou Peter Marlowe, agachando-se feliz. A obscenidade malaia sempre o encantava. Não tinha uma tradução literal em inglês, mas “puki” referia-se grosseiramente a uma parte íntima da mulher, e “ ‘mahlu” significava “envergonhado”.
— Seus filhos da mãe, não dá para falarem inglês uma vez na vida? — disse o Coronel Larkin. Achava-se deitado no colchão, que estava jogado no piso. Larkin sofria de falta de ar por causa do calor, e tinha dor de cabeça, restos da malária. Mac piscou para Peter Marlowe.
— A gente fica explicando, mas nada penetra nessa cabeça dura! Não há esperança para o Coronel!
— É isso aí, camarada! — exclamou Peter Marlowe, imitando o sotaque australiano de Larkin.
— Por que cargas-d’água fui meter-me com vocês dois — gemeu Larkin, cansadamente — é que nunca vou saber.
— Porque ele é preguiçoso, hem, Peter? — disse Mac, com um sorriso. — Você e eu fazemos todo o serviço, não é? E ele fica sentado e finge que está inválido... só porque está com uma pontinha de malária.
— Puki ‘mahlu. E me arrume um pouco d’água, Marlowe!
— Pronto, Coronel, senhor! — Entregou a Larkin seu cantil. Quando o viu, o Coronel sorriu, em meio à sua dor.
— Tudo bem, Peter, meu rapaz? — perguntou, suavemente.
— Tudo. Meu Deus, entrei em pânico durante algum tempo.
— Mac e eu também. — Larkin bebeu um gole e devolveu com cuidado o cantil.
— Tudo bem, Coronel? — perguntou Peter Marlowe, assustado com a cor de Larkin.
— Puta merda! — exclamou Larkin. — Nada que uma garrafa de cerveja não pudesse curar. Mas estarei bem amanhã.
Peter Marlowe acenou com a cabeça, concordando.
— Pelo menos, a febre passou — disse. A seguir, apanhou o maço de Kooas, com negligência estudada.
— Meu Deus! — exclamaram Mac e Larkin, a uma só voz. Peter Marlowe abriu o maço e deu um cigarro a cada um.
— Presente de Papai Noel!
— Porra, onde arranjou isso, Peter?
— Espere até termos fumado um pouquinho — disse Mac, com azedume — antes de ouvirmos as más notícias. Ele provavelmente vendeu nossas camas, ou coisa parecida.
Peter Marlowe contou-lhes sobre o Rei e sobre Grey. Escutaram com espanto crescente. Contou-lhes sobre o processo de tratamento do fumo, e escutaram em silêncio até que ele mencionou as porcentagens.
— Sessenta-quarenta! — explodiu Mac, radiante. — Ó, meu Deus, sessenta-quarenta!
— É — disse Peter Marlowe, entendendo Mac erradamente. — Imagine só! Bem, então mostrei-lhe como se fazia. Ficou surpreso quando eu não quis nada em troca.
— Você ensinou o processo de graça? — Mac estava embasbacado.
— Claro. Alguma coisa errada, Mac?
— Por quê?
— Bem, não podia fazer negócio com ele. Os Marlowes não são comerciantes — explicou Peter Marlowe, como se estivesse falando com uma criança. — Simplesmente não agem assim, meu velho.
— Meu Deus, você tem uma oportunidade maravilhosa de ganhar dinheiro e a esnoba desdenhosamente. Suponho que saiba que com o Rei como sócio você poderia ganhar dinheiro bastante para comprar rações em dobro até o dia do Juízo Final. Que diabo, por que não ficou de boca calada e me ensinou e deixou que eu...
— Mas que conversa é essa, Mac? — Larkin interrompeu bruscamente. — O rapaz agiu direito, não teria sido bom para ele ter negócios com o Rei.